Jornal Estado de Minas

Banho com cachaça na imagem de santo é documentado para entrar para história


 

Uma tradição secreta de mais de 200 anos foi quebrada ontem no distrito colonial de Morro Vermelho, em Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Pela vez, as mulheres puderam assistir ao início da cerimônia de banho com cachaça de Nosso Senhor dos Passos, que ocorre às 12h da quarta-feira de Cinzas na Matriz de Nossa Senhora de Nazareth. Também de forma pioneira, uma equipe de pesquisa – no caso, do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG) – documentou o ato compartilhado apenas por homens, leigos, e com duração de uma hora. A partir das entrevistas com moradores, gravações e investigação das origens do ato, os técnicos vão fazer um inventário, que, no futuro, poderá tornar o banho patrimônio imaterial. Com a cerimônia, o Iepha deu início ao projeto Ritos da Quaresma e Semana Santa, que se ampliará por todo o estado e não tem data para terminar.



A cerimônia começou com meia hora de atraso, e para surpresa de mães filhas e até meninas de colo que estavam no gramado diante da igreja, todas foram convidadas a entrar. A permissão partiu do coordenador do grupo, o aposentado Nildo Jesus Leal, de 71 anos, que desde os 18 honra a tradição, que recebeu novos adeptos. “Não tem problema, elas só vão ficar uns minutos, o tempo de tirar a imagem do altar”, disse Nildo. Com efeito, logo que os irmãos Antônio Lopes, de 52, o Toinzinho, e José Márcio Lopes, o Biló, de 54, desceram escultura de cedro, do século 18, e a entregaram a José Carlos Sacalina Dias, de 63, e Nildo, o grupo feminino deixou o templo, sem reclamar.

“Foi emocionante, um momento histórico”, disse a estudante capixaba Juliana Corsino, de 21, que passou os feriados de carnaval no distrito do início do século 18. Ao lado, a prima Daiana Corsino, de 26, estudante de arquitetura e também residente no Espírito Santo, gostou de ver, pelo menos por 10 minutos, o começo do rito bicentenário.

Para a estudante de direito e técnica em enfermagem Suely Nazareth Pinheiro, de 31, moradora de Morro Vermelho, a oportunidade foi única, “pois nunca deixaram a gente ver nada”, enquanto a gestora cultural Adriana Pinheiro Leal lembrou que o fato foi realmente inédito, embora os homens tenham mantido todos os contatos com o padre Wellington, titular da Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, que não participa por se tratar de um ato exclusivo de leigos. “Desta vez, juntamos dinheiro e compramos uma peruca nova para a imagem, de cabelos naturais”, contou Adriana.



Gamela

Vestidos com roupas do dia a dia, mas participando da cerimônia como se fosse de uma sociedade secreta, o grupo de oito homens, assim que a imagem é retirada do altar, a despe das vestes de veludo roxo e roupas brancas de baixo. Este ano, tão logo a peça sacra ficou despida, os repórteres e técnicos do Iepha tiveram que desligar as câmeras.

Em seguida, a escultura de tamanho natural foi colocada, de pé, numa gamela, e assim começou o banho do Senhor dos Passos com pinga da região, que depois é recolhida em garrafas e usada com fins terapêuticos. “Este ano, eu curei uma dor de cabeça insuportável. Minha mulher passava a pinga na minha testa e cabelos e dizia que eu iria melhorar”, revelou Toinzinho. Ao lado, José Carlos tomou um gole numa cuia, gesto seguido pelos companheiros.

Proteção contra todos os males

Aguardente usada para lavar o Cristo é engarrafada e guardada por moradores para fins terapêuticos (foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)
Um dos momentos comoventes, e que chegou a arrancar lágrimas de muita gente, foi quando o autônomo Sílvio Pinheiro Neto, de 58, nascido em Morro Vermelho, se ajoelhou e lavou as pernas do Cristo com aguardente. “Peço saúde”, disse Silvinho, como é mais conhecido, que está com tumor cerebral e chegou acompanhado do filho, Hélder Cassimiro Pinheiro, de 20, estudante de engenharia mecânica em Ouro Preto. Participando há 26 anos, Antônio Itamar Vieira, de 60, o Gelatina, ressaltou que a coroa do Cristo, quando retirada, deve ser passada na garganta para afastar as doenças. Já a peruca antiga é colocada sobre a cabeça de cada um, a fim de proteger contra todos os males. “Deixei de trabalhar hoje para vir aqui”, contou Gelatina.



Da cerimônia não podem participar crianças, jovens menores de 18 anos e mulheres.“Eu era menino e ficava olhando os mais velhos, pela fresta da porta, ansioso para chegar o dia em que poderia estar presente. O meu avô era um dos que davam o banho de cachaça no Cristo, mas meu pai, não. Quem me trouxe pela primeira vez foi o avô do meu amigo Toinzinho”, lembrou-se Nildo ao fim da cerimônia, quando José Leal, de 75, bate o sino característico anunciando que para ele, a pinga é benta. Depois do banho, a escultura é vestida com o manto e colocada de joelhos, com a cruz às costas, até a semana santa, quando sairá em procissão pela cidade.

Há 37 anos participando da cerimônia, o aposentado Walter Estefânio, de 63, disse que o registro pelos técnicos do Iepha é importante para preservar o rito. Conforme a tradição, o banho com cachaça serve para evitar que a madeira se deteriore ao longo dos anos ou seja alvo dos cupins. Coincidência ou não, o fato é que essa é a única peça sacra da Matriz de Nossa Senhora de Nazareth ainda não atacada pelos insetos ou destruída pela ação do tempo.

A equipe da Gerência de Patrimônio Imaterial do Iepha, comandada por Luís Gustavo Molinari Mundim, foi representada pelo restaurador Ailton Batista da Silva, o antropólogo Leonardo Augusto Silva Freitas e o técnico Adalberto Mateus. “Este é, certamente, o único rito deste tipo no país”, disse Ailton, lembrando que agora será feita a pesquisa bibliográfica. “O inventário é o primeiro passo para a manifestação se tornar patrimônio imaterial”, disse Adalberto.



ENQUANTO ISSO...
...CHAROLA NAS ÁREAS RURAIS

O distrito de Morro Vermelho tem outro tipo de tradição secular. Durante a quaresma, uma imagem pequena de Nosso Senhor dos Passos percorre comunidades rurais vizinhas de Caeté, Barão de Cocais, Raposos, Sabará e Santa Bárbara, convidadas para as cerimônias da semana santa no povoado. Reza a tradição que a imagem não pode passar por perímetros urbanos. Ela é carregada numa charola, um pequeno andor enfeitado, e costuma passar a noite na casa dos fiéis. Há cerca de 20 anos, uma devota acendeu uma vela e o fogo destruiu a escultura de madeira, que remontava ao século 19. O jeito foi fazer uma nova, o que não interrompeu a tradição nem diminuiu a fé do povo.