Jornal Estado de Minas

Veneno que vem do pasto põe em risco o Rio São Francisco

Manejo inadequado na pecuária, com derrubada de mata ciliar e lançamento de dejetos, contribui para a poluição do São Francisco. Alto índice de fósforo preocupa no Centro-Oeste

Mateus Parreiras
Tambor de agrotóxico abandonado em Martinho Campos e cabeças de gado em Parque de Exposições de Abaeté que lança dejetos em curso d'água são exemplos de ameaça da pecuária ao São Francisco e afluentes - Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press

 

Abaeté, Martinho Campos, Pompéu –  Boiadas que tanto inspiraram a obra do escritor João Guimarães Rosa, quem diria, se tornaram ameaça à saúde do Rio São FranciscoTradição do Centro-Oeste ao Norte de Minas, a pecuária tem contribuído para a poluição do rio mais importante do estado por conta do manejo inadequado em parte das propriedadesDerrubada de mata ciliar, lançamento de dejetos em cursos d’água e pouco cuidado com fertilizantes são algumas das práticas que refletem o crescimento desordenado da atividade e têm reflexo sobre a qualidade da água do Velho ChicoA pecuária é tema da terceira reportagem do Estado de Minas sobre a poluição no Rio São Francisco

A criação de gado cresce em ritmo acelerado ao longo do rioDados do IBGE mostram que enquanto o rebanho em Minas diminuiu 7,5% entre 2004 e 2011, o número de cabeças de gado cresceu 15% nos 43 municípios banhados pelo São Francisco – de 1,97 milhão para para 2,27 milhões de animais no períodoO crescimento se torna problemático quando o manejo não é feito de forma adequadaUm dos exemplos está no Centro-Oeste mineiro: a abertura de pastagens em Pompéu, Martinho Campos e Abaeté é apontada como uma das causas para a grande quantidade de fósforo nas águas do São Francisco na região, segundo relatório do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) concluído no terceiro trimestre de 2012.

Rejeitos de frigorífico em Abaeté são despejados sem cuidado e escorrem para o Rio Marmelada, afluente do Rio São Francisco - Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press No ponto de coleta da confluência com o Rio Pará, foram encontradas quantidades de fósforo 430% superiores ao limite de tolerância estabelecido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama)O nível máximo não poderia ultrapassar 0,05 miligrama por litro de água, mas chega a 0,215 no ponto de mediçãoA presença de fósforo é prejudicial à fauna aquática porque favorece a proliferação de algas e micro-organismos que consomem o oxigênio das águas, além de dificultar a penetração da luz solar no interior do rioA presença de fósforo também propicia a reprodução de cianobactérias que podem produzir toxinas com efeitos danosos à saúde humana e da fauna



“Os efeitos das grandes concentrações de fósforo na água são tão nocivos quanto os do esgoto doméstico”, compara o coordenador do laboratório de Ecologia de Peixes da Universidade Federal de Lavras (Ufla), Paulo dos Santos Pompeu“A pecuária sozinha não é uma vilã, mas é um grande problema quando associada ao desmatamento e à perda ciliar”, acrescenta o especialistaEle ressalta que há formas sustentáveis de ampliar a atividade, com manutenção florestal“Isso impede o assoreamento, que torna os rios mais rasos e com menos peixes”, diz

Fertilizantes

Ao percorrer pastagens de beira de rio entre Martinho Campos e Pompéu é possível constatar que matas ciliares que serviam de proteção para as margens são suprimidas para dar lugar a capim e cercasNo encontro das águas mansas do Rio Pará com o curso turbulento do Rio São Francisco, a água é espessa e há concentração de nutrientes, onde florescem aguapésTambores plásticos de fertilizantes ficam espalhados nas pastagens novas e plantações de cana-de-açúcar, alguns deles em meio à água empoçada das chuvasÉ com as precipitações que fertilizantes dissolvidos no solo chegam ao leito do Velho Chico e do Rio Pará.

Os currais também não são preparados para tratar excrementos e implementos agrícolas e acabam despejados em valas que correm pelo solo e invariavelmente atingem as águas do rioEm Abaeté, onde a pecuária é um dos símbolos da cidade de clima sertanejo, nem mesmo o parque de exposições municipal se preocupa com os lançamentos de dejetosValas permitem que estrume e urina do gado cheguem diretamente ao Rio Marmelada, afluente do São Francisco.

Em afluente, matadouro e frigorífico são problema

Sem fiscalização, o abate de bovinos também contribui com a poluição no Rio São Francisco ou afluentes
Em Abaeté, no Centro-Oeste de Minas, matadouros clandestinos despejam excrementos, vísceras e sangue diretamente no Rio Marmelada, um dos mais poluídos afluentes do Velho ChicoA reportagem do EM flagrou ainda frigorífico no qual há dejetos manejados sem cuidadoO Rio Marmelada apresenta níveis de coliformes fecais 4.900% acima do limite estabelecido pelo ConamaA água tem  também 117% menos oxigênio, 89% mais manganês e 76% mais ferro que o recomendável.

No bairro de São Pedro, um abatedouro que funciona de forma clandestina, sem respeitar normas sanitárias básicas, faz lançamentos no Rio Marmelada“Os homens do matadouro trabalham de madrugada, para a fiscalização não verO cheiro dos animais mortos e do estrume entra em casa”, relata o aposentado Dalmi Xavier, de 54 anos, vizinho do empreendimento“Depois que terminam de abater os bois e porcos, cai tudo no Rio Marmelada”, acrescenta.

Ainda na cidade, um frigorífico que aparenta funcionar corretamente, com funcionários vestidos apropriadamente e manejo adequado, também se descuida com dejetosNa parte de trás, coberto por uma mata onde passa o Rio Marmelada, os rejeitos de cor amarelada são lançados para a coleta, para a qual há até uma estação de tratamentoMas o material despejado por dutos tem primeiro de ser despejado numa caçamba puxada por tratorNo processo, boa parte do líquido vaza da caçamba e escorre diretamente para o Marmelada.

O EM entrou em contato com funcionários do frigorífico, que insistiram que todos os seus dejetos são tratados na estação própriaOs representantes da empresa não foram encontradosProcuradas para se pronunciar sobre a fiscalização de empreendimentos e fazendas, as prefeituras de Abaeté e Pompéu não responderam até o fechamento desta ediçãoA prefeitura de Martinho Campos informou que não foi notificada pelo Igam sobre o aumento das concentrações de fósforo no Rio São Francisco e afirmou agir por meio de denúncias para coibir desmatamentos e manejos inadequadosA Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável informou que o planejamento de 600 fiscalizações no Rio São Francisco previstas para este ano  inclui atividades agropecuárias.

Vídeo mostra trecho contaminadoAssista.