(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas

Rede de corrupção dá bolsa-pesca até para fazendeiros e políticos

Bolsa destinada exclusivamente a sustentar pescadores artesanais no período de reprodução das espécies acaba engordando os bolsos de políticos, comerciantes e até religiosos, enquanto nos rios proibição é ignorada e fiscalização se omite


postado em 28/02/2013 06:00 / atualizado em 28/02/2013 07:13

Canoas paradas: bolsa foi criada para garantir sustento de ribeirinhos proibidos de pescar durante a piracema, entre novembro e fevereiro, mas sobra para fraudadores e falta para quem realmente precisa(foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
Canoas paradas: bolsa foi criada para garantir sustento de ribeirinhos proibidos de pescar durante a piracema, entre novembro e fevereiro, mas sobra para fraudadores e falta para quem realmente precisa (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
A época mais sensível do ciclo natural dos peixes de rios é alvo de atividades predatórias que ameaçam extinguir espécies nas águas mineiras, e já comprometem o sustento de pescadores, enquanto a principal política oficial para evitar capturas predatórias acaba sustentando pessoas que estão longe de depender da atividade. Compreendida entre novembro e fevereiro, a chamada piracema chega hoje ao último dia. É o período de reprodução, em que os exemplares estão mais vulneráveis às redes e anzóis dos profissionais. Capturar animais nessa época é proibido, mas surubins, dourados e matrinchãs – espécies ameaçadas de desaparecer – continuam sendo fisgados sem interferência da polícia ou de órgãos ambientais e de regulação da atividade, como mostra a partir de hoje série de reportagens do Estado de Minas. O Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) entende que a solução é “conscientizar”, mas o instrumento mais usado para inibir transgressões vem alimentando uma rede de corrupção. O Seguro-Desemprego ao Pescador Artesanal, um salário mínimo mensal pago na época do defeso a quem sobrevive da pescaria rudimentar, acaba em muitos casos engordando os bolsos de pessoas como políticos, fazendeiros, comerciantes e até religiosos. Os reais necessitados muitas vezes não veem a cor do dinheiro.


Vasculhando as listas de recebimento dessas bolsas para pescadores artesanais e cruzando-as com comprovantes de pagamentos de instituições públicas, registros de outras atividades e lastros de campanhas políticas, a reportagem do EM encontrou pelo menos 55 pessoas em Minas Gerais suspeitas de receber auxílios fraudados. São ex-vereadores, carvoeiros, donos de negócios privados e empresários que dirigem carros novos, têm propriedades e ainda assim desviam o recurso que poderia ampliar as políticas de preservação da fauna e das comunidades ribeirinhas. Não é pouco dinheiro envolvido. Só em Minas Gerais foram liberados, nos últimos quatro anos, R$ 62.474.905,44 para o seguro, 2% dos  R$ 2.921.112.552,70 pagos no Brasil. Porém, Minas é exatamente um dos estados que têm a fiscalização mais frágil. Nos últimos dois anos houve 90 mil benefícios suspensos no Brasil e 98.336 carteiras de pesca cassadas por suspeitas de fraude. Em Minas, 3.757 carteiras foram suspensas, mas nenhuma delas devido a desvios do seguro-desemprego do pescador artesanal, segundo os ministérios da Pesca e do Trabalho.

A apenas três quilômetros da Lagoa da Pampulha, um dos símbolos de Belo Horizonte, mora uma pessoa que, segundo o registro no Ministério do Trabalho, sobrevive do sustento que tira de rios e lagos. Ou seja, um pescador artesanal em plena área urbana da capital. Mas esse homem, de 60 anos, não está entre aqueles que insistem em tentar capturar tilápias das águas poluídas pelo esgoto na Pampulha. O pescador, que recebeu R$ 3.924 desde 2011 – dinheiro que deveria prover seu sustento para não morrer de fome na piracema –, está inscrito a 220 quilômetros da capital mineira, como integrante da colônia pesqueira de Abaeté, no Centro-Oeste do estado. Mas esse homem, o pastor Roberto Marcos dos Santos, está longe de ser um pescador artesanal.

Na verdade, o pastor Santos é administrador de uma instituição para tratamento de dependentes químicos também na Pampulha. Os 36 pacientes que ela mantém precisam pagar um salário mínimo mensalmente e contribuir com cestas básicas enquanto tentam se livrar dos vícios, segundo o programa seguido pelo religioso. O sítio onde funciona a instituição tem piscina, área de lazer e lago com peixes, e ela emprega também a mulher e o filho do pastor-pescador.

Roberto Marcos dos Santos não se constrange quando perguntado se é pescador artesanal. Sua primeira resposta é afirmativa: “Sou, sim. Pesco na represa de Três Marias”. Quando confrontado com suas outras atividades remuneradas, que por sí só o impediriam de receber o recurso, e questionado se precisa da pesca para sobreviver, a conversa muda de rumo. “É um dinheiro que uso para repor meus alimentos. Tudo o que pesco é para manter essa instituição (para dependentes). Quando tinha folga, ia pescar e o peixe que eu adquiria fazia com que virasse alimento aqui dentro da instituição”, tenta justificar.

Ao procurar o pastor, uma semana antes, a equipe de reportagem foi informada por um dos recepcionistas da casa de recuperação que o religioso estaria pescando na represa de Três Marias, no Rio São Francisco – mesmo recebendo, irregularmente, uma bolsa para não fazer isso, em pleno período da piracema. “Fui para lá para passear com minha família. Os peixes que tenho aqui são todos de antes da piracema”, argumentou, ao receber o EM.. O homem então mostra uma porção de espécimes congelados, bem ao lado de uma tabela de preços. Santos entra novamente em contradição, ao confirmar que, além de manter sua instituição, vende peixes para os vizinhos. Diante de tantas evidências, acaba admitindo as irregularidades. “Não digo que a pesca é meu sustento, mas ajuda na minha manutenção”, alega, dizendo que precisa do dinheiro da bolsa para se manter à frente da instituição que administra.

PESCADORES DO ASFALTO Mas o pastor-pescador está longe de ser o único. Para se ter uma ideia dos disparates que ocorrem contra o estímulo público para a preservação dos peixes, os registros do governo federal mostram que em grandes capitais, distantes de locais onde se pesca por subsistência e com recursos hídricos poluídos e inóspitos aos peixes, há pessoas recebendo auxílio público como se fossem pescadores artesanais. Na capital mineira, por exemplo, 25 pessoas recebem religiosamente o benefício desde 2010, em um montante que já soma R$ 82.556. São Paulo, que apesar de ter lagoas com peixes não tem colônias pesqueiras, registra o impressionante número de 175 pescadores que declaram sobreviver dessa atividade e precisar de subvenção federal para se manter na piracema. Os “pescadores paulistanos” consumiram, nos últimos anos, R$ 418.674. Até a capital federal, aparentemente, tem pescadores de subsistência que não têm outra forma de sobreviver no período de reprodução dos peixes: são cinco pessoas registradas em Brasília.


Saiba mais


Seguro-Desemprego a Pescador Artesanal

É a assistência financeira temporária concedida desde 1992 exclusivamente ao pescador profissional que exerce suas atividades de forma artesanal, individualmente ou em regime de economia familiar, e que tem suas atividades paralisadas no período de defeso (fechamento da temporada de pesca para reprodução dos peixes). Para ter direito ao recurso, o pescador deve ter registro de profissional na categoria artesanal; estar inscrito no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); comprovar venda do pescado 12 meses antes do defeso ou possuir comprovante de dois recolhimentos ao INSS. Deve, ainda, comprovar o exercício profissional da atividade de pesca artesanal ininterruptamente (a maioria faz isso por meio das colônias de pescadores) e não ter vínculo de emprego, relação de trabalho ou outra fonte de renda. Fraudadores podem ter o benefício cancelado e ser obrigados a devolver os recursos aos cofres públicos.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)