Jornal Estado de Minas

Estação esperança

Antiga construção da Gameleira recebe indicação para ser tombada

Antiga construção em BH será destinada a escola de circo. Imóvel, em ruínas, deve ser cedido pelo governo federal

Jaqueline Mendes
Leandro Couri/EM/ DA Press - Foto: Cercado por mato, prédio atrai vândalos e deixa moradores do entorno vulneráveis. Nesta semana, o que sobrou do imóvel recebe oficialmente indicação para tombamento


À direita de quem segue a Avenida Amazonas, rumo a São Paulo, em terreno bem próximo ao Centro de Convenções Expominas, definha um símbolo da história ferroviária de Belo Horizonte: a Estação Gameleira, inaugurada em 1917Depois de muito descaso, enfim o ponto está prestes a receber socorro e vai ser destinado à Escola Livre de CircoNesta semana, as ruínas do imóvel da Região Oeste recebem oficialmente a indicação para início do processo de tombamento em esfera municipal.

Força-tarefa envolvendo agentes do poder público trabalham com o prazo inicial de 30 dias para que todas as medidas emergenciais sejam tomadas pelo futuro do bemEntre elas, a cessão do imóvel do governo federal para o municípioPara o promotor Marcos Paulo de Souza Miranda, da Coordenadoria das Promotorias Estaduais de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais, esse é o primeiro passo importante para o “começo da solução de um problema”.

O promotor de Justiça vê a situação do bem como um “péssimo exemplo” de como é tratado o patrimônio ferroviário no país e espera que ele seja finalmente recuperado e devidamente socializadoA luta pela estação não é de hojeEm 2006, o Ministério Público e o Patrimônio Histórico e Cultural de Belo Horizonte entraram com ação civil pública na Vara da Fazenda Municipal em defesa do patrimônio, com pedido de liminar para que a extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA) e a Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) tomassem providênciasO imbróglio entre a RFFSA e a FCA apenas contribuiu com o abandono e a degradação do endereço, sob a guarda do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).

Situação triste, que faz o ferroviário aposentado Vantuil Narciso de Lacerda, de 80 anos, respirar fundo e voltar no tempo para reviver o espaço“Não gosto nem de lembrar de como era tudo neste lugarAqui, todos os dias, trabalhavam 70 homens e circulavam dezenas de pessoasTudo era muito limpinho… naquele lugar, a gente tinha uma ponte rolante”, aponta
Com os olhos marejados, Vantuil fala da alegria de ter sustentado a família de 17 filhos – 14 legítimos e três de criação – com o trabalho de manobrista na estação ferroviária.

Os filhos do ex-ferroviário também trabalharam no lugar, vendendo doces e bolos na plataformaA mulher, Olira Xavier Lacerda, de 69, companheira de meio século de casamento, elogia o parceiro: “É um homem maravilhosoPor muitos anos, a vida dos passageiros esteve nas mãos do meu maridoEra ele quem virava os trilhos, e nunca deixou que nada de ruim acontecesse na estação”.

Rotina e cuidados com o lugar, que, em parte, se mantémO velho Vantuil, de notável saúde e preparo físico, é quem, até hoje, toma conta do que sobrou de pé no terreno público“Ontem mesmo, à meia-noite, eu estava dentro da estação para ver se a bandidagem estava lá”, contaCoragem que já lhe custou um corte na mão, feito a facão, resultante de uma agressão de um carroceiro que queria despejar lixo nas ruínas do imóvel a caminho do tombamento.

A mulher, Olira, é quem fala do ocorrido: “Deu até políciaA gente não gosta de confusão, faz de tudo para evitar, mas não teve jeitoO sujeito avançou no meu marido com o facão, dizendo que isso aqui não é dele”Vantuil, fortaleza de chapéu, botina de couro e sorriso amigo, ouve a mulher, tomada por orgulho
“Meu marido diz que, enquanto viver aqui, vai proteger o lugar”, sorri, demonstrando cumplicidade.

Leandro Couri/EM/ DA Press - Foto: Com a mulher, Olira, Vantuil Lacerda toma conta do que ainda está de pé no terreno

Críticas

A dona de casa critica o descaso com a estação“Estão fazendo a área de depósito de lixoÉ uma penaEstá perigoso, atrai gente ruimOutro dia, tentaram estuprar uma mulher ali, à luz do dia”, denunciaOlira volta a afirmar que quem cuida do lugar, do jeito que pode, é seu maridoRevela que, há pouco tempo, Vantuil gastou R$ 500 para fazer uma cerca de arame farpado e tentar conter invasões.

Contudo, feliz com o rumo que os filhos tomaram, “todos bem encaminhados na vida”, deixa as preocupações de lado para falar de alegrias“Vivemos um tempo maravilhoso aqui, a época do trem Vera Cruz e dos trens de subúrbio, até o fim dos anos 1980”, relembraTraz à varanda foto de “mil novecentos e antigamente” para mostrar às visitasNela, cena de flerte com o companheiro, na antiga estaçãoRepetem a cena, no banco de madeira, para nova fotografia.

Na mesa farta da casa à beira dos trilhos, construída nos anos 1980, café e bolo de fubáCom a simplicidade da boa gente mineira e hospitaleira, o ferroviário diz fazer correr apenas os maus elementos que querem depredar a estação“Se vem para o bem, é amigo e é muito bem recebido”, diz, cheio de graça com os cães vira-latas Boca Branca e Lambari, serelepes aos pés das cadeiras“Podem ficar sossegadosEles estão aqui apenas para avisarNão mordem ninguém”, nos garante.

Símbolo

O diretor de Patrimônio Cultural, gestor de departamento da Prefeitura de Belo Horizonte, Carlos Henrique Bicalho, vê com entusiasmo o futuro da Estação Gameleira“Com o tombamento, assim que efetivado, vai haver mais autonomia para a busca de recursos e alternativas para a sua recuperação e conservação”, dizBicalho, arquiteto e restaurador, ressalta a importância do bem e defende que, recuperado, o espaço seja de uso coletivo pela memória da cidadeLamenta ainda toda a morosidade no trâmite nas esferas públicas, que faz cair aos pedaços um símbolo importante da cidade.

Saiba mais

ESTAÇÃO GAMELEIRA


Inaugurada em 1917, a Estação Gameleira marcou época com a linha Paraopeba, que traçava caminho da capital mineira ao Rio de JaneiroEm Minas Gerais está grande parte do maior patrimônio brasileiro à beira dos trilhos, erguido entre o fim do século 19 e o início do século 20São mais de 1,5 mil estações ferroviáriasMuitas delas, como a Gameleira, à espera de cuidados e novos tempos a serviço da população.