Jornal Estado de Minas

Cachorra ecológica recolhe garrafas nas ruas da capital

Animal da raça cocker spaniel encanta moradores de dois bairros da Região Centro-Sul de BH ao recolher na rua garrafas plásticas para os donos reciclar em casa

Sandra Kiefer
Nala (E) foi treinada pelos donos, o austríaco Adalbert Bernhard e a psicóloga brasileira Mércia Bernardes - Foto: Maria Tereza Correia/EM/D.A Press
Com suas orelhas redondas e olhar esperto, uma cocker spaniel malhada tornou-se a atração entre os adeptos das caminhadas dos bairros São Bento e Santa Lúcia, na Região Centro-Sul de Belo HorizonteBatizada originalmente de Nala, a cadela recebeu dos moradores o apelido de cachorrinha da reciclagem, porque sempre teve o hábito de carregar uma garrafa plástica na bocaEla não pode ver uma embalagem vazia descartada nas ruasSeguindo o próprio faro, recolhe o recipiente entre os dentes e o carrega por quilômetros até chegar em casa, onde será devidamente reciclado pelos donos, o professor de idiomas austríaco Adalbert Bernhard, o Adi, de 65 anos, e a psicóloga Mércia Bernardes, de 61


Faz nove anos que esse gesto se repete, durante a caminhada diária do casal, tornando-se difícil calcular quantos PETs a cachorrinha já retirou do meio ambiente“Não há como dizer isso sem parecer chavão, mas, se cada um fizer uma pequena parte, acaba ficando grande”, explica MérciaEla conta ainda que a generosidade do animal desperta o melhor sentimento nos vizinhos da pista de cooper: “As pessoas estão sempre sorrindo para nós, elogiam a iniciativa”De origem perdigueira, a cocker queria levar para casa todas as embalagens que encontrava jogadas nas praças e ruasNala queria “reciclar” latas de alumínio e até garrafas de vidro, como cascos de cervejaPreocupados com sua segurança, os donos a treinaram a pedir permissão antes de catar a garrafaSe for de água mineral ou refrigerante, está liberado

Se for de detergente ou inseticida, sinal vermelho.

Nala enche os donos de orgulho e provoca ciúmes na golden retriever Bah, que deveria chamar mais atenção pelo tamanho e cor caramelo, além da bandana roxa na coleira“Ela até tenta tomar a garrafa da outra, mas Nala é mais danadinha e sempre vence a disputaPor ser de uma raça de cães caçadores, a cocker tem por instinto sempre carregar algo na bocaJá a outra não consegue”, comparam os donos, sem esconder a satisfação com o animalComo se prestassem atenção na conversa, as duas iniciam uma divertida briga pela garrafa de água mineral azulBah se aproveita de uma distração de Nala, toma a embalagem para si e corre na frente, em disparadaMas a dianteira dura pouco e logo Nala retoma seu troféu, que Bah deixa escapar da boca

O comportamento de Nala é um espelho da convivência com os donosSegundo Adi, que ostenta a bandeira brasileira no chapéu de lona de abas largas, reciclar seria equivalente a respirar na ÁustriaO costume já está incorporado na cultura do país nórdico desde os anos 1980
“Cada casa na Áustria tem em frente lixeiras nas cores amarela, verde, azul, vermelha e pretaTodas as pessoas separam o lixo durante uma semana e, em um dia definido, passam os lixeirosNo Brasil, ainda não funciona assim”, compara

Coisas do Brasil

Entre coisas que não funcionam em BH, Adi inclui o trânsito e os bancos“Às vezes a burocracia aqui me estressa muito, mas existem compensações como o futebolAqui, qualquer time de bairro derruba a Seleção da Áustria”, brinca“Tem também a cultura, o artesanato, a música, a comida e o clima”, exalta Adi, que prefere caminhar sob o sol, com o cuidado de usar chapéu e protetor solar para proteger a pele claraEle e Mércia, nascida no Brasil, se recusam a mudar para a Europa por causa do frio“Ele me fez ver o Brasil com outros olhos e a valorizar o verdeNa Áustria, na maior parte do ano a vegetação está coberta por neveA paisagem é branca, com alguns pinheirosSó nascem jardins no verão”, explica Mércia.

A brasileira pactuou com o marido adotar a prática da reciclagem no apartamento onde moram, no Santa LúciaOs dois estão no segundo casamento e se conheceram por intermédio da troca de e-mails, apresentados por uma amiga em comumMaravilhado com o Brasil em viagem anterior de negócios, Adi interessou-se em conhecer o idioma antes de voltar ao paísIniciou uma conversação a distância com Mércia e descobriram interesses em comumAntes de se aposentar, ambos atuavam no setor de recursos humanos nos países de origemEle é engenheiro de formação“Lembro-me até hoje que levei uma hora para escrever o primeiro e-mail de três linhas para a Mércia, consultando diversos dicionáriosGuardo até hoje a mensagem”, conta

Com Mércia, o austríaco aprendeu a falar o português (apesar do sotaque carregado) e a amar os cãesProtetora dos animais, a psicóloga recolhe muitos abandonados na rua e cuida delesA mãe de Nala foi achada na Barragem Santa Lúcia, grávida, atolada na lagoa, em época de forte estiagemEstava anêmica e recebeu todos os cuidados de Mércia, que esperava acolher uma ninhada cruzada de vira-latasPara sua surpresa, porém, nasceram seis filhotes de cocker spaniel, entre eles a malhada, que chegou a ser doada para uma família e depois devolvida, já batizada de Nala (a namorada do rei Leão no desenho animado de mesmo nome da Disney)“Pegamos para criar, porque ela não podia ficar mudando de casa toda horaGosto muito dos cães e meu companheiro assimilou bem issoEles interagem com a gente, dão suporte quando a gente precisaSão as nossas meninas, a nossa nova família, agora que os filhos se tornaram adultos”, define.