Jornal Estado de Minas

Belo Horizonte se mostra uma "cidade surda" para quem tem deficiência auditiva

Obter informações simples, como endereço ou preço de produto, é um tormento

Valquiria Lopes
Laís Drumond enfrenta muitas dificuldades no dia a dia, como num guichê na rodoviária. A boa surpresa foi encontrar o soldado João Luiz Chagas, com quem conversou em Libras - Foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press

As mãos que "falam" e tentam se fazer entender são de Laís DrumondA atriz de 29 anos, surda desde o nascimento e filha de pais ouvintes, não se intimida em buscar informações, andar de ônibus, recorrer à Justiça ou abrir conta em bancoMas nem sempre essas tarefas que fazem parte do dia a dia da maioria das pessoas são tão simples para LaísAssim como ela, muitos surdos voltam para casa em Belo Horizonte frustrados ao buscar de atendimento por não conseguirem se comunicar com os ouvintesIsso porque, além da dificuldade de audição, muitos têm o desenvolvimento da fala afetado, e sem o acompanhamento de um intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras) não conseguem ser entendidos.

Mesmo depois de 11 anos de oficialização do método, a primeira língua para surdos, quem convive com a deficiência relata os muitos desafios ainda a vencerNa capital, são 4.557 pessoas surdas e 107.046 com alguma deficiência auditiva, segundo dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)Juntas, representam 4,5% da população da cidade.

A falta de compreensão sobre a língua do deficiente auditivo se repete a cada esquina em que ele precisa sair do seu mundo silencioso e trocar informaçõesO Estado de Minas foi às ruas com Laís Drumond para testar atendimentos e constatou as dificuldades enfrentadas no comércio, em órgãos públicos estaduais e municipais e na Polícia MilitarO problema é o mesmo: não há pessoas com conhecimento em Libras para atender deficientes auditivos.

A ausência de intérpretes começou na primeira parada: a Unidade de Atendimento Integrado (UAI) Praça Sete, onde Laís pediu informações a uma funcionária sobre emissão de certidão de nascimento"A funcionária tentou sinalizar, mas ficou nervosa e sorrindo, ao contrário da expressão facial firme, que o surdo precisa para entender uma mensagemPor fim, ela disse que era difícil, que não me entendia", relatou Laís.

Segundo a atriz, a atendente ainda arriscou com o sinal de "nascer”"em Libras, mas não sinalizou a palavra documento nem soube explicar o valor e o procedimento necessário para emissão
A "conversa" terminou em papel e caneta"Todos os dias, eu e meu marido chegamos com pilhas de papéis em casa, como todos os surdos", reclamaSegundo o coordenador da unidade, Eliel Benites, os funcionários da recepção e do serviço Posso Ajudar estão recebendo treinamento uma vez por semana, há cerca de três mesesEle fala dos avanços, mas reconhece: "Ainda estamos em fase inicial".

No terminal rodoviário, não foi diferenteO teste foi feito nos guichês de duas empresas de viagens, mas em ambos houve decepçãoNa primeira, o pedido era para uma passagem com destino a Niterói (RJ)Poderia ter sido qualquer trecho que Laís não teria sido atendida, já que a funcionária foi clara"Eu não te entendo", disse em meio a risosEla tentou ser solícita e pediu que a atriz escrevesse seu pedidoSó assim houve comunicação
No segundo caso, Laís afirmou que não sabia escreverDesse modo, mesmo tendo sinalizado para três funcionários sua intenção de comprar um bilhete para São Paulo, não houve sucesso na tentativaEla foi encaminhada ao setor de informações da rodoviária, onde também não havia intérpretes.

O teste para fazer uma simples compra acabou em transtorno tambémImagine explicar ao vendedor o desejo de comprar um sapato vermelho, de salto alto, pago em quatro vezes no cartão e sem jurosMesmo com todo o esforço do atendente Janiel Salvador, de 22 anos, em acertar na cor, a forma de pagamento não foi compreendida"Ela é espertaSe comunica bemMas não entendo a linguagem dos surdos", disse JanielO gerente da loja, Geovane Gonçalves, reconhece o problema: "Talvez seja a hora de buscar a capacitação".

Dados do IBGE indicam que dos 4.179 surdos de BH com idade acima de 10 anos, 35,2% se enquadram na faixa etária de rendimento entre um e cinco salários mínimos, o que representa o maior percentualOutros 28,2% recebem até um salário e 10,6% ganham acima de cinco saláriosSegundo a demógrafa do instituto Luciene Longo, "a distribuição de renda entre os surdos se encaixa na da população ouvinte"Laís lembra que investir na capacitação de funcionários no comércio pode representar um diferencial"Se uma loja tem alguém que entende Libras ela vira referência entre os surdos".

POLÍCIA MILITAR

Uma experiência positiva surpreendeu Laís em sua luta diáriaAo pedir uma informação a um militar no Centro da capital, ela foi prontamente atendida pelo soldado João Luiz Chagas, da 6ª Ciado 1º BPM, que estuda comunicação assistiva na PUC Minas"Foi a única situação em que me senti bem, porque pude me comunicar sem dificuldade", disse a atrizO interesse do soldado pelo curso surgiu da demanda diária da população deficiente"Tenho contato com cegos, surdos e pessoas com deficiência físicaPreciso estar preparado para atendê-los".

Mas chamar a polícia é um problema para os surdosA queixa é sobre a falta de intérpretes e atendimento por telefone"Nos comunicamos por mensagem de celularAí, eles retornam a ligaçãoDo que adianta?", cobra LaísO chefe da Sala de Imprensa da PM, major Gilmar Luciano Santos, informou que policiais não têm formação em Libras, à exceção dos militares do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate)A capacitação estava prevista, segundo ele, no pacote de cursos que serão ministrados aos policiais até a Copa das Confederações.