Jornal Estado de Minas

Pinturas raras são descobertas em igreja de Sabará

Jorge Macedo - especial para o EM
Gustavo Werneck

 
Auxiliar de restauração, Priscila Coimbra mostra peças achadas em caixa e que serão usadas na restauração - Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press.
A morte é igual para todos, independentemente do poder na TerraMesmo que o “cadáver ilustre” tenha sido papa, bispo, rei ou militar, o fim nivela quem usou coroa de rei, mitra episcopal ou chapéu de capitãoEssa parece ser a mensagem – ou sentença – contida no forro da Capela do Santíssimo da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Sabará, na Região Metropolitana de Belo HorizonteConsiderada uma das primeiras de Minas, datada de 1710, a igreja entra na terceira fase de restauração redescobrindo as pinturas que, se à primeira vista parecem sinistras, aos poucos revelam a beleza barroca e levam a imediata reflexãoEm cada quadro em policromia, com frases em latim, há uma caveira ligada à ocupação em vida do defunto“Quando estiver pronta, a capela será uma fonte de informações sobre iconografia, simbologia, arte colonial brasileira e, claro, um encantamento para quem olhar para cima”, diz a especialista Carla Castro Silva, encarregada do serviço“Pinturas desse tipo são raridade no país”, revela.

Os motivos no forro se referem à antiga serventia do espaço: no passado, foi capela mortuária, sendo feitos ali os velórios de religiosos e outras personalidades da épocaSobre o andaime, Carla aponta os estragos que o tempo, os cupins e as goteiras fizeram nas pinturas“Vamos desmontar todo o forro e, para tanto, já numeramos peça por peçaHá madeiras apodrecidas e todo o cuidado é pouco”, afirma a restauradoraA capela tem ainda um altar com chinesices, ou chinoiseries , motivos orientais executados por mão de obra chinesa, recrutada em Macau, antiga possessão portuguesa
“O estado aqui também é precário, as perninhas douradas do anjo estão se soltando”, mostra Carla, lembrando que os elementos artísticos são no estilo nacional português, a primeira fase do barroco.

A terceira etapa vai contemplar, além das pinturas e retábulos da Capela do Santíssimo, o altar de São Francisco Borja, certamente um dos mais antigos do estado, e a porta decorada do consistório, que também remetem a temas fúnebresHá os quatro cavaleiros do apocalipse (morte, fome, peste e guerra), inspirados nos desenhos do pintor e ilustrador alemão Albrecht Dürer (1471–1528), o inferno, o juízo final e o paraíso – nesse, há uma cena curiosa, pois enquanto todos sobem aos céus e são recebidos pelos anjos, apenas o rei fica na Terra, acenando para as almas.
 
A expectativa é que de que a atual etapa dure oito meses, já estando captados, via Lei Federal de Incentivo à Cultura, R$ 300 mil da CemigComo proponente do projeto está a Sociedade Civil Espírito Santo, vinculada à Arquidiocese de Belo Horizonte“O valor aprovado na lei foi de R$ 1,4 milhão e precisamos do restante dos recursos para concluir os trabalhos, que incluem as duas sacristias, cinco arcadas da nave, o batistério e altar de São Miguel”, explica Henrique Godoy, da Via Social – Projetos Culturais e Sociais, empresa encarregada da produção executivaA equipe já começou a empreitada de higienização, desinfestação e imunização preventiva; fixação da camada pictórica e do douramento; tratamento e revisão da estrutura; limpeza, consolidação e recomposição de suportes, de elementos de talha da policromia e douramentos; reintegração das cores e aplicação de verniz de proteçãoO trabalho terá ainda tratamento, montagem e acabamento das peças.

“É um alívio muito grande para a comunidade, pois as obras continuamEstávamos preocupados com a situação da Capela do Santíssimo, que se degradava lentamente”, diz o integrante da Irmandade do Santíssimo Antônio Pereira, que está sempre de olho em todos os detalhes ao lado de Élcio Edmundo BrandãoNa sacristia, a auxiliar de restauro Priscila Coimbra, de Sabará, trabalha na mesa do retábulo de São Francisco Borja e diz que é um prazer atuar num projeto que valoriza o patrimônio da cidade

CUSTOS
Até hoje, já foram empregados R$ 2 milhões no restauro da matrizAs primeiras obras começaram em 2004, com verba do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), com substituição completa do telhado, pintura externa e restauração completa da capela-mor
Já a segunda, com recursos de empresas privadas e de economia mista, contemplou o arco-cruzeiro, o forro da nave e as paredes lateraisInterditada pelo Corpo de Bombeiros em 2003, a Matriz de Nossa Senhora da Conceição sofreu duros reveszes ao longo dos anos, como repinturas das talhas e elementos artísticos, infiltrações, ataque de cupins, madeiras apodrecidas que representam risco à sua integridade e outros fatores de descaracterização
 
Da imagem da padroeira, com 2,7 metros de altura, em cedro, que agora ostenta as cores originais e uma coroa de prata, feita pelo artesão Joerg Artur Ammann, foi retirada uma camada de meio centímetro de repintura“Só do forro da nave, desmontamos cerca de 1 mil peças, que, depois de mapeadas, voltaram para o local de origem, restauradas”, afirma Carla CastroOutro desafio foi remover 3 mil quilos de entulho, resultado de obras antigas, que estavam na coberturaAinda agora, Carla e sua equipe, com os zeladores, recolhem em caixas peças que se desprenderam dos retábulos e do forroTombada há 70 anos pelo Iphan, a matriz reúne características únicas, como a forma abobadada e ricos elementos artísticos dos séculos 18 e 19

Saiba mais

forro teve destaque

O forro da capela mereceu atenção especial de Rodrigo de Melo Franco de Andrade (1898 – 1969), responsável pela criação do Serviço do Patrimônio, em 1937, atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)Ele destacou o trabalho como “do período inicial da pintura mineira”E mais: “A maior parte das composições é constituída de formas abstratas, possivelmente para tornar mais impressiva a representação realista dos emblemas que ostenta, da autoridade régia, papal, episcopal e canônica, contrastando com o sentido das inscrições entremeadas no conjunto e tiradas do Eclesiastes e dos Profetas”.

Memória

Documentos foram queimados por padre

A Paróquia de Sabará foi criada em 1701 pelo bispo do Rio de Janeiro, dom Frei Francisco de São JerônimoJá a Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de Sabará, pelo governador Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, em 17 de julho de 1711Entre essas duas datas, iniciou-se a construção da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, que, segundo a tradição popular ,foi sagrada como matriz em 8 de dezembro de 1710Ao contrário de outras cidades mineiras que têm arquivos com muitas informações, em Sabará a situação é diferente e as datas não são muito precisasIsso porque os documentos relativos à história da cidade teriam sido queimados por um pároco cujo antecessor havia contraído lepraEntão, para se livrar do risco de contágio, o padre incinerou todos os papéis que estiveram em contato com o doente