Jornal Estado de Minas

Uma poliglota na faxina do Mercado Central

Pernambucana com curso superior que morou na Europa e fala sete línguas é descoberta no serviço de limpeza do Mercado Central e vira recepcionista de turistas

Arnaldo Viana
Da faxina ao atendimento a turistas - Foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press
Na tarde de sexta-feira, 3 de maio, a morena magra Maria da Conceição da Silva, de 41 anos, encostou o carrinho de recolher o lixo nos corredores do Mercado Central, a vassoura, as luvas e foi cumprir o horário do lancheO celular tocaEra uma ligação internacional, da HolandaEla atende e fala cerca de 40 minutosUm dos colegas correu à segurança e avisou: “Há uma faxineira maluca, falando embolado”O chefe da segurança a abordou e descobriu que a mulher não só falava holandês, como também inglês, espanhol, italiano e ainda conversa o básico em alemão e hebraico.


Levada ao superintendente do mercado, Luiz Carlos Braga, a faxineira confirmou o que dissera ao chefe da segurança e ainda revelou que tem formação superior em contabilidade“Quando vi o passaporte dela, as passagens pela Holanda e Alemanha, não tive dúvidaMandei a Maria da Conceição largar a limpeza, passar um batom e assumir um lugar de recepcionista no guichê da Belotur, na entrada da Avenida Augusto de Lima.” É lá que a morena magra, pernambucana de Recife, está agora à espera dos turistas, que devem invadir o Brasil durante as copas das Confederações e do Mundo.

Bem-vindo, welcome, bien viendo, welkome, bienne venuttoQue venham brasileiros, ingleses, norte-americanos, todos os cidadãos de língua espanhola e italiana, alemães, árabesSerão bem recebidos pela nordestina humilde, delicada e sorridenteMas como esta mulher, com tantas qualificações, foi parar na faxina do Mercado Central? É uma história longa de família pobre, surgiu sem estrutura, de apego, desapegos, mas nunca de desistência

Uma história de preconceito, que ela não enfrentou na Europa, onde morou por um bom tempo, mas no seu país natal, exatamente em Minas Gerais.

“Sou filha de pais separadosMeus irmãos mais velhos foram doados à minha avó maternaOutro foi viver também com parentesMinha mãe me doou ainda bebê, mas alguns dias depois se arrependeu e me buscou.” A mãe vivia do trabalho como domésticaMaria da Conceição, aos 11 anos, foi trabalhar como recepcionista de um advogado“Estudava em um colégio de freiras e, no escritório, fazia também serviços gerais e de datilografia.” Isso quase em meados dos anos 1980A mãe, então, resolveu mudar para Fortaleza (CE).

Mudanças

“Fui dar continuidade ao ensino fundamental em um colégio militar, com bolsa de estudosA mãe resolveu mudar de novoA convite da filha mais velha, casada com um caminhoneiro, foi para Elesbão Veloso (PI)De lá, Maria da Conceição foi para Teresina
Entrou no Colégio Salesiano, onde conclui o ensino médio e praticou esportes“Cheguei à seleção de handebol da escola.” Outra mudança da mãe, para Campina Grande (PB), cidade na qual Maria da Conceição foi de tudo: doméstica, vendedora, representante comercial

Retornou para Elesbão Veloso e lá ajudava no sustento da casa como empregada até a mãe adoecer e morrer, meses depois, em 1991Maria da Conceição, então com 18 anos, resolveu ir embora“Queria ir para Tocantins, mas resolvi ir para Campina GrandeFormou-se em contabilidade, trabalhou em quase tudo o que apareceu pela frente“Comecei no levantamento de estoque em uma loja de autopeças, depois fui para o balcão, onde aprendi muitoFiz serviços hidráulicos e de servente de pedreiroFui doméstica e até na mecânica me arrisquei.”

Professora de colegas da limpeza

Já no posto turístico, Maria da Conceição atende Terezinha Idelgino - Foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press Em 2005, uma reviravolta na vida de Maria da ConceiçãoEla trabalhava em manutenção de computadoresPor acaso, na rua, conheceu um espanhol, um alemão e uma holandesa, em viagem de intercâmbio no Brasil“Com o inglês básico, que aprendi nos colégios e em cursinho, conversei com elesProcuravam um lugar para morar temporariamenteOferecei minha casa em troca de uma pequena ajudaAceitaram e nos tornamos amigos.” Os três estrangeiros foram embora, mas continuaram conversando com a pernambucana pela internet“Numa dessas conversas, entrou uma mineira, 10 anos mais nova do que eu, que se tornaria minha companheiraSou homossexual assumida desde os 14 anos.”

As duas foram convidadas para uma viagem à HolandaLá, Maria da Conceição fez de tudo para sobreviverFaxina, pintura e reforma de residências“Fui bem recebida e orientada a estudar a língua localNão só aprendi o holandês, como aprimorei o inglês e o espanholEstudei também o italiano e um marroquino maluco me ensinou alguma coisa de hebraico.” Maria da Conceição foi chamada para fazer um serviço de instalação de piso em Frankfurt e Düsseldorf e aprendeu o alemão.

No ano passado, a família chamou a companheira mineira de voltaMaria da Conceição ficou na Holanda“Mas não resisti ao inverno rigoroso e à saudadeCheguei aqui em setembro e desde então procuro emprego.” Maria da Conceição experimentou o preconceito e a desconfiança mineira: “Você não é de Minas e não empregamos pessoas de foraVeio da Europa, o que estava fazendo lá? Ah, você já passou dos 40Você tem curso superior e aqui só empregamos quem tem, no máximo, o médio”.

“Era isso o que ouvia quando mostrava o currículo em lojas, hotéis, empresas de faxina, restaurantes, supermercadosUm dia, estava perto do mercado e quase desistindo de pedir empregoResolvi entrar para comprar uma goma de tapiocaFoi agora, no dia 2.” Como dizem que no mercado tudo que se procura acha, Maria da Conceição conseguiu emprego“Perguntei a uma pessoa da faxina se havia vaga e fui ao escritórioMas não apresentei currículo e omiti a formação superior e o fato de falar outras línguas.” Foi admitida com salário em torno de R$ 800 e hoje no balcão de informações turísticas ganha em torno dos R$ 1,5 mil.

Maria da Conceição não vê nenhum problema em voltar para a limpeza, se for preciso“Voltaria para a faxina com muito orgulhoContinuarei humilde, simples, sempre aprendendo.” Ela acha importante compartilhar o que sabe e ensina inglês às colegas da limpeza no mercadoMaria da Conceição pede uma pausa na conversa para atender Terezinha Idelfino da Silva, de 75 anos, que chega ao guichê em busca de informaçãoGostou, dona Terezinha? “Éla é ótima, muito simpática.” É preciso dizer mais?

Veja a reportagem daTV Alterosa