Jornal Estado de Minas

Trotes humilhantes continuam acontecendo apesar de proibição das universidades

Mesmo proibida, prática resiste nas universidades federais e desafia instituições de ensino a acabar com atitudes que expõem calouros a situações constrangedoras

Valquiria Lopes
Estudantes da UFMG humilhados em atos impostos por veteranos no câmpus da Pampulha e na Faculdade de Direito - Foto: Reprodução Facebook

Dois incidentes envolvendo estudantes que participavam de trotes em universidades federais mineiras comprovam que, embora proibida, a prática persiste no ambiente acadêmicoUm deles ocorreu em março com alunos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e teve repercussão nacional com fotos divulgadas nas redes sociaisAs imagens mostram uma estudante com o corpo pintado com tinta preta, acorrentada e puxada por um veteranoEla ainda carregava uma placa com os dizeres “caloura Chica da Silva”, em referência à famosa escrava que viveu em Diamantina no século 18Em outra imagem, um calouro está amarrado a uma pilastra enquanto três veteranos fazem uma saudação nazistaHá poucos dias, a situação se repetiu, dessa vez com alunos da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), nos Campos das VertentesVinte e três veteranos foram presos, acusados do crime de constrangimento ilegal contra calouros que foram pintados e levados às ruas para pedir dinheiro


Os dois exemplos são uma demonstração de que os alunos veteranos resistem a acabar com o trote e continuam a expor os calouros a situações vexatórias e abusivasA justificativa para essa resistência é que se trata de um rito de passagem do ensino médio para o superior e um momento de integração entre calouros e veteranosE a desobediência às determinações da direção das instituições de ensino é generalizadaLevantamento feito pelo Estado de Minas em 191 dos 502 cursos superiores oferecidos por univeresidades públicas no estado mostra que o trote ainda persiste em 137 deles, o que representa 71% do total

Enquanto calouros e veteranos acham a prática normal e descontraída, representantes das universidades veem o trote como algo violento, vexatório e humilhanteNesses eventos, os calouros são submetidos a situações como o corte de cabelo forçado, pintura no corpo e mendicância nas ruas, entre outras

Diante da desobediência dos universitários, uma pergunta: por que é tão difícil barrar o trote? Para especialistas, a manutenção da prática é uma questão culturalÉ o que explica um dos membros da Diretoria Executiva da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o reitor da Universidade Federal de Alfenas Paulo Márcio de Faria e Silva“Entendo como uma questão de cultura dos jovens que chegam e inclusive acham que têm o direito de receber o trote, sob pena de não serem acolhidos pelos alunos que já estão estudando”, dizPor outro lado, afirma Silva, “os veteranos veem a prática como uma demonstração de poder por terem chegado antes à universidade”

A faixa etária dos alunos – a maioria entre 17 e 20 anos – e o consumo exagerado de bebida alcóolica estão entre os fatores que reforçam a repetição da situação, como lembrou o especialistaSegundo ele, a maior parte dos calouros está saindo da adolescência e deixando o ambiente familiar pela primeira vezVão morar sozinhos ou em repúblicas, como é o caso daqueles que se mudam de cidade para estudar“São meninos que querem experimentar o sentimento de liberdade e encontram, fora de casa, um cenário que oferece as condições para que isso ocorra”, afirma o diretor da Andifes


Paulo Silva fala do esforço conjunto das instituições em frear o trote universitário e diz que Minas não tem situação diferente do restante do Brasil“A questão ligada ao trote ocorre indistintamente em todo o paísCada entidade tem autonomia para criar suas regulamentações, mas o repúdio a essas manifestações de violência física ou moral é um sentimento comum a todas”.

FORA DOS PORTÕES Se nos câmpus já é difícil impedir os trotes, nas ruas das cidades onde as universidades estão instaladas é praticamente impossívelEm Alfenas, no Sul de Minas, a universidade proibiu a prática em 2008“Mas ainda não conseguiu impedir que os calouros sejam levados às ruas com o corpo pintado e os cabelos raspados pelos veteranosTambém são colocados em fila para marchar e obrigados a pedir dinheiro no semáforo para financiar festas para os veteranos”, conta o reitorA cidade convive com um caso trágico de troteDe acordo com Silva, há cerca de 20 anos um estudante se feriu em uma praça da cidade durante o trote e ficou paraplégicoHá seis anos, houve abertura de um processo para apurar um desses eventosImagens de vídeo foram analisadas, mas ninguém foi identificado nem punido.

Em São João del-Rei, onde um trote violento virou caso de polícia nos dias 22 e 23 de maio, quando alunos de zootecnia e de engenharia elétrica da universidade federal da cidade foram presos, acusados do crime de constrangimento ilegal contra calouros, a proibição da prática está em vigor desde 2009Há ainda uma lei municipal, aprovada no ano passado, que também considera a prática ilegalO pró-reitor de graduação da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) Marcelo de Andrade, explica que o veto foi uma forma de barrar as manifestações, que para ele são consideradas uma exposição dos alunos e um desrespeito à dignidade humanaTrotes solidários, como a arrecadação de alimentos para doação, são bem-vindos na instituição, segundo o reitor.

Palavra de especialista

Quezia Bombonatto, psicopedagoga e presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia ( ABPp)

AGRESSIVIDADE EM ALTA

“Para os estudantes que entram na universidade, o trote representa um rito de passagem, o marco para um novo ciclo da vidaSó que, ao longo dos anos, esses ritos tomaram uma dimensão de agressividade, se tornaram cada vez mais violentosO que antes se resumia em uma acolhida com atividades como pintar o rosto e cumprir metas atualmente tem conotação sádica marcada por uma relação de poderEntão, para ser aceito, o calouro precisa aguentar as exigências dos veteranos, fazer pedágio nas ruas para financiar festas e passar por tantas outras situações humilhantes e vexatóriasA idade dos praticantes e dos que recebem o trote também influenciaSão adolescentes que acham que podem tudo e que cada vez mais têm limites menos rígidos em casa e na sociedadeEles acham que limite é sinônimo de repressão e vivem a era do hedonismo, em que o que mais importa é o prazerAs drogas e o álcool dão uma dimensão ainda maior a esses atos e a impunidade dentro das instituições dificulta a extinção do trote estudantil.”