Mateus Parreiras
É em meio ao agito da noite belo-horizontina, quando tribos urbanas convergem para a Savassi, na Região Centro-Sul, que uma guerra de intolerância para marcar território ocorre longe dos olhos da maior parte da população. Entre o papo nas mesas de bares e as paqueras, poucos percebem quando turmas de jovens portando armas brancas se medem à distância, prontas para trocar agressões caso os rivais se atrevam a cruzar seu espaço. Segundo relatório da inteligência da 4ª Companhia do 1º Batalhão da Polícia Militar, ao qual o Estado de Minas conseguiu acesso com exclusividade, há quatro grandes grupos dessas tribos, a maioria composta por jovens de classe média. Em dois anos de acompanhamento, os militares destacam os skinheads neonazistas e os punks como os mais violentos. Ao todo, 31 pessoas envolvidas nesses movimentos, formados também por góticos e emos, são monitoradas e têm passagens policiais por agressão, lesão corporal e vandalismo, além de uso e tráfico de drogas.
Conflitos entre essas tribos, com trocas de socos, correntadas e pedradas, são registrados nas madrugadas, segundo o major Carlos Alves, comandante da 4ª Companhia. “Nas imediações da Praça da Liberdade ocorrem brigas com frequência. Monitoramos sobretudo os casos de ameaças, para que não se tornem homicídios. É o crime que mais preocupa o Estado”, afirma o oficial. O militar conta que, quando um grupo ocupa um espaço, o outro não se aproxima. “A não ser que queiram se desafiar. Geralmente se aglomeram em locais de penumbra, que se tornam guetos. Normalmente, a aparência dessas pessoas chama muito a atenção. Os skinheads, por exemplo, usam coturnos, são carecas e fortões. Os outros têm piercings e cabelos coloridos”, descreve.
Os grupos com mais componentes sob vigilância são os de punks e de skinheads neonazistas, cada qual com 12 monitorados pela PM. Entre eles estão Antônio Donato Baudson Peret, o “Tim”, de 25 anos; Marcus Vinícius Garcia Cunha, de 26, e João Matheus Vetter de Moura, de 20, todos presos por apologia ao nazismo e formação de quadrilha, em 14 de abril, dias depois de Donato ter postado numa rede social uma fotografia em que aparece estrangulando com uma corrente um morador de rua negro. A denúncia contra os três foi aceita pela Justiça Federal.
Considerados nacionalistas e conhecidos por pregar a “supremacia branca” contra judeus, negros e homossexuais, os neonazistas geralmente se reúnem na praça da Savassi. “Ficam bebendo e brincando de bater uns nos outros. Se alguém olhar atravessado, é briga na certa. Outro dia, um colega teve de pegar um pau para se defender deles, só porque é negro”, conta um lavador de carro da região, que pediu para não ser identificado, com medo de retaliações.
Apesar da violência dos skinheads, o grupo que mais preocupa a PM atualmente é formado pelos punks. “Eles vêm da Savassi e descem a Avenida Bias Fortes até a Praça Raul Soares, onde se aglomeram. Nos últimos dias recebemos muitas denúncias de agressões contra eles, por causa da presença dos garotos de programa nos bares que os punks frequentam. Aumentamos o policiamento”, afirma o major Carlos Alves.
Praça da intolerância
A chuva fina da noite de quinta-feira deixou o complexo cultural da Praça da Liberdade praticamente deserto. Contudo, apesar da escuridão e do aspecto de abandono, no espaço de convivência entre o anexo da Biblioteca Pública Estadual, o Museu das Minas e do Metal e o Memorial Minas Gerais Vale, pequenos grupos de simpatizantes dos movimentos punk e emo se revezavam entre as colunas e reentrâncias das paredes dos edifícios para fumar maconha e consumir vodca e cachaça. A área é onde a Polícia Militar registra mais conflitos entre as tribos que lotearam a região da Savassi, praças da Liberdade e Raul Soares, segundo informa o comando da 4ª Companhia do 1º Batalhão da PM. Pelas pichações que se sobrepõem pelo espaço – uma forma de desafio para as gangues do submundo –, fica evidente a disputa do território por skinheads neonazistas, punks, góticos e emos.
Naquela noite em especial, uma mistura de cheiros fortes tomava conta do espaço. Exalava dos grupos por lá espalhados, vindos da falta de higiene de moradores de rua e das drogas usadas por grupos de jovens espalhados pelos cantos. A parte externa do anexo da biblioteca foi ocupada por uma dúzia de moradores de rua, que dormiam enrolados em papelões. No vão de passagem da Rua da Bahia, encostado numa pilastra, um casal punk dividia uma garrafa de vodca e fazia a brasa do cigarro de maconha brilhar em meio à conversa arrastada. O rapaz exibia uma cabeleira estilo moicano e pulseiras de couro com pinos metálicos; a mulher, um cabelo trançado e jeans rasgados.
No corredor entre biblioteca e o Museu das Minas e do Metal, a parede branca foi toda pichada por rabiscos pretos das gangues que se revezam no local. Era lá que três amigos fumavam machonha encostados na parede, para ficar encobertos pela sombra. Se autodefinem como simpatizantes do movimento punk. Um deles usava boné e agasalho com desenho de extraterrestre. Outro, também de boné, tinha os lóbulos das orelhas ampliados por argolas de metal e um brinco entre as narinas. O terceiro vestia um casaco de couro escuro e tinha cabelo espetado.
Para começar a conversa, perguntamos sobre drogas. “Só a nossa (droga) mesmo. A gente vem aqui porque pode fumar e ficar trocando ideia. Você pode comprar maconha (faz referência a dois pontos bem conhecidos do Centro de BH), mas vem malhado (uma quantidade considerada pequena pelo preço)”, orienta o rapaz de agasalho de ET. “Aqui em BH todas as bocas (de fumo) fecham às 21h para maconha. Poderia comprar onde a gente mora (faz referência ao bairro), mas como você não conhece lá é embaçado (perigoso)”, completa o jovem de adereços de orelha. Perguntados sobre a divisão territorial da praça, dizem que há muitas brigas, mas que são causadas por excesso de bebida ou por rixas entre grupos específicos. “Não é todo mundo que briga. Mas, se você sabe que os carecas não gostam de você, ir aonde estão é provocar. Os skinheads e punks ficam se desafiando na rua, rabiscando as pichações uns dos outros, mandando recado de que vão cobrar a tirada (desafio)”, esclarece o rapaz de cabelo espetado.
CONFUSÃO Na tarde seguinte, a equipe de reportagem retornou e encontrou mais pessoas na praça. Havia casais homossexuais de emos, gente de cabelo colorido e visual punk. Três adolescentes que também se definiam como simpatizantes de punks e emos estavam encostados na mesma parede da noite anterior. Bebiam garrafas de rum e de refrigerante de limão e fumavam cigarros aromatizados. O trio fala mais abertamente sobre os conflitos. “Aqui (na Praça da Liberdade) ou na Savassi, o que ocorre é que tem uns caras que ficam querendo arrumar confusão, obrigar os outros a não ficar onde estão. Acho os skinheads abomináveis, mas na maioria das brigas que rolam por aqui tem é punk envolvido”, disse um dos garotos.
Os três se lembram que há poucas semanas um grupo grande de punks passava pela praça e foi provocado por uma turma de funqueiros que estava indo para um festival. “Foi uma briga generalizada. Os funqueiros provocaram e os punks não deixaram barato. Foram para cima e foi uma confusão de socos, pedradas, correntadas. Quem não tinha nada a ver com aquilo saiu correndo”, lembra um dos adolescentes. A PM informou que tem monitorado esses conflitos e que sabe quem são todos os envolvidos.
‘Gente estúpida e reconceituosa’
O corpo forte do jovem belo-horizontino de 21 anos era marcado por símbolos nazistas: uma águia nas costas, uma suástica no ombro e uma cruz no peito. Arrependido, depois que a “fase” passou, o rapaz precisou fazer outras tatuagens para camuflar os símbolos de que tinha orgulho e que agora o envergonhavam. “Pensava que era nazista, mas estava enganado. Fiz muita besteira na minha vida, briguei com quem nem conhecia, me envolvi com gente estúpida e preconceituosa”, disse. O ex-skinhead, que pede para não ter a identidade revelada para preservar o emprego e a vida nova que quer seguir, se envolveu numa das ocorrências por lesão corporal em que Antônio Donato Baudson Peret, o “Tim”, de 25 anos, foi arrolado pela polícia, e destaca a importância de Donato para os nazistas na capital mineira. “Conheci o Donato e andei com ele desde que eu tinha 15 anos. É um cara que ninguém aguenta, porque briga com os próprios amigos. Mas ele é o movimento neonazista em Belo Horizonte, o único que sai daqui três vezes por ano para reuniões com outros grupos em São Paulo e no Sul do Brasil”, conta.
O jovem entrou para o grupo de Antônio Donato depois de trocar postagens nazistas por meio de uma rede social. “Gostava muito de história e por isso me interessei pelo nazismo. Mas me decepcionei ao ver que não tinham qualquer organização séria aqui em BH. Eram só reuniões em que os caras ficavam enchendo a cara de bebida, fazendo bagunça e falando mal dos outros”, afirma. O ódio dos skinheads neonazistas é teoricamente voltado contra judeus, negros e homossexuais, mas em BH o grupo de Donato teria predileção por perseguir gays.
Sobre as brigas, o ex-nazista conta que eram pouco frequentes, porque a maioria dos encontros se dava nas casas dos componentes da gangue ou em bares próximos, nos bairros Cidade Jardim e Santo Antônio. Quando resolviam passear pela Savassi é que os conflitos estouravam. “A gente já saía bêbado. Se encontrasse um homossexual ou punk pela frente já partia para cima. Principalmente dos punks. Mas não tinha essa coisa de marcar briga de bando. A gente escolhia um e pegava o cara quando saía de casa ou encontrava na rua”, disse. Hoje arrependido, o jovem conta que prestou serviço comunitário e não quer mais envolvimento com essas tribos.