“Cara limpa, cara limpa”, gritaram os manifestantes, ontem, depois que um grupo de vândalos, com os rostos cobertos por camisas, quebrou a vidraça de uma loja de produtos naturais na Avenida Cristóvão Colombo, na Savassi, e furtou potes de suplementos alimentares. O pedido para um protesto sem violência fechou mais um dia de manifestações em Belo Horizonte, marcado pela concentração e passeatas de pelo menos 10 mil pessoas que começaram no início da tarde e terminaram à noite na Praça Sete, se estendendo para o Viaduto Santa Tereza, a Praça da Assembleia e outras regiões.
A Polícia Militar informou que também está atenta à atuação de vândalos durante as manifestações. Na noite de anteontem, por exemplo, 12 pessoas foram presas em flagrante por depredação, sendo nove com ficha criminal. E ontem houve novas prisões de suspeitos de crimes.
Foi o que aconteceu na noite de ontem. Às 20h40, os manifestantes chegaram à Praça da Savassi. Após uma bandeira do Brasil ser pendurada em um poste, a multidão cantava o Hino Nacional, quando vândalos subiram a Cristóvão Colombo, em direção à Avenida do Contorno. Eles colocaram fogo em sacos de lixo na calçada e quebraram a vidraça da loja. Rapidamente, a multidão reagiu gritando: “sem vandalismo”.
Além dos apelos, um grupo correu para frente da loja e fez uma corrente humana de braços dados para impedir os saques. Nesse momento, manifestantes e vândalos entraram em confronto, mas, com a chegada de mais gente contrária às depredações, os criminosos fugiram. Quando a polícia chegou foi informada de que ali só havia manifestantes e que os baderneiros haviam corrido. Começou então o apelo da maioria para que outros manifestantes tirassem as camisas e máscaras dos rostos. Por volta de 21h, eles retornaram para a Praça Sete. Exausta pela caminhada, a maioria se sentou no chão e depois se dispersou aos poucos.
Na noite de terça-feira, manifestantes já haviam tentado sem sucesso impedir a ação dos encapuzados, que atacaram a sede da prefeitura, lojas, agências bancárias e ônibus e outros veículos,. prova de que a resistência ao vandalismo e á violência é crescente entre a maioria.
O que se viu ontem nas ruas e praças foi muita gente com os rostos pintados de verde e amarelo, bandeiras do Brasil, diversas reivindicações – do passe livre estudantil à destinação de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para as áreas de educação e saúde e muitos cartazes condenando a violência.
“Vandalismo não me representa”, lia-se no cartaz erguido pelo estudante Pedro Cordeiro, de 17. “O pessoal tem um raiva contida da corrupção mais, mas os vândalos não nos ajudam a conseguir as mudanças que queremos. Falta liderança para motivar as pessoas a evitarem esse tipo de coisa”, analisa.
Repúdio crescente
A empresária Alice de Faria, de 24, foi para a manifestação acompanhada do marido, o também empresário Hernane Afonso, 26, e dos filhos Rodrigo e Erick, de 6 e 3. Os quatro foram a todas manifestações, desde segunda-feira. “Esses casos de violência são isolados e envolvem pouca gente. Costumam ocorrer mais tarde, quando a maioria já foi embora. O pessoal tenta conter, mas acaba recuando, com medo de se machucar”, observa. “Isso acaba ofuscando a beleza do movimento, mas a gente que está na paz vai conseguir passar nossa mensagem”, disse a moça.
Emocionados, ela e Hernane choraram quando Erick, sentado nos ombros do rapaz, ergueu um cartaz com a inscrição “Eu mereço um país melhor” e foi ovacionado pela multidão em volta. “Ficamos emocionados. As crianças também têm o direito de lutar”, disse Hernane.
Dias de luta, dias desleais
Carlos Marcelo
Praça da Liberdade, noite de terça-feira. Alguns minutos depois das 22h, a equipe do Estado de Minas termina de registrar a chegada de manifestantes ao local. A menos de 50 metros dali, um grupo com os rostos encobertos intimida motoristas de carros particulares e passageiros de ônibus com paus, pedras e gritos. Camiseta e calça jeans, um jovem de cabelo encaracolado se aproxima dos jornalistas e, enquanto arruma os óculos de aro redondo, nos pede: "Olha, o que eles estão fazendo não tem nada a ver com os nossos protestos. Por favor, nos ajudem a mostrar que eles só querem violência. E divulguem o que a gente está fazendo, que é tão bonito".
Não precisava pedir. Mesmo em manifestações de menor porte, como o protesto de anteontem em frente ao Palácio da Liberdade, é facilmente perceptível que há dois grupos nas ruas: o maior, heterogêneo, é formado por pessoas de idades e motivações diferentes; outro, bem menor, é integrado pelos baderneiros. São aproveitadores que, quando a noite cai, cobrem os rostos com as próprias camisas e partem para atos de depredação, saques e intimidação. Nos olhos, em vez de esperança e desafogo, ostentam ódio e brutalidade. Ao contrário do grupo majoritário, dá para imaginar direitinho o que eles querem. E está bem longe de ser o que tem levado milhões de cidadãos brasileiros a sair de casa para explicitar o pertencimento da pátria sem mediação de partidos nem ufanismos estéreis.
Desde o início da semana, há uma nova batalha nas noites de BH. O confronto se configurou entre os que desejam continuar a se expressar e os que cometem a deslealdade de se aproveitar de um movimento espontâneo para obscurecer o que foi, de súbito, iluminado. Estamos atravessando dias históricos; dias de descoberta, por uma nova geração, que é permitido protestar. Mas o grito há tempos engasgado não pode ser sufocado por quem oculta a face para esconder suas reais intenções. Em última instância, a ameaça não é ao patrimônio, mas à liberdade de ir às ruas e voltar para casa com a alma lavada.