Jornal Estado de Minas

Da festa ao caos - repórteres do em.com.br narram o que viram em Belo Horizonte

Capital mineira foi palco da maior operação policial da sua história recente

Era uma vez um lindo ato cívico
Mais de cem mil vozes retumbavam o orgulho de ser brasileiro, até que os estampidos de bombas silenciaram o grito da democraciaO verde-amarelo ficou cinzaNo trajeto, que parecia conduzir a uma mudança política, sobrou um rastro da destruição e desordemOs pulmões inflamados pela esperança foram sufocados pelo gás lacrimogênioO brilho nos olhos cedeu lugar à vermelhidão e lágrimas - não de emoção, mas também por efeito do produto tóxicoCenário de guerra não se aplica para descrever a situação, pois não havia corpos pelo chão como os filmes do gênero mostramMas as cenas foram de completa selvageria, protagonizadas por uma parcela ínfima entre os milhares que marchavam pela Avenida Antônio CarlosÀ Polícia Militar restou a reação – que assustou pela força empregada.


Por Emerson Campos
22 de junho de 2013Dia com manhã calma, mas tarde e noite complicadas de descreverAcompanhado pelo colega Daniel Silveira, cortei a capital mineira a pé
Duas vezesO objetivo era cobrir uma manifestação com pinta para ser históricaO que, de fato e infelizmente, ocorreuExplico o porquêNa ida do Centro de Belo Horizonte rumo ao Mineirão, passando pelo Viaduto A e subindo pela Avenida Presidente Antônio Carlos, o sentimento era de alegria e admiração pela reunião recorde de estudantesE não eram só elesSenhores, famílias completas e muitas crianças faziam um ato cívico invejável, com gente de todas as classes, tribos e tipos, gritando por pautas diversas, mas justasPorém, na volta, o sentimento mudou e a tristeza tomou contaQuem desceu os 6,5 quilômetros seguindo o mesmo caminho, depois das 20h, testemunhou uma cidade destruída, com inúmeras marcas deixadas por atos de vandalismo e violênciaO grupo responsável pelos ataques, antes tímido, ganhou corpo e tornou temeroso o protesto
O que se viu foi muito fogo e pouca inteligência.

Estive nos três lados possíveis do confronto: atrás dos manifestantes, na retaguarda da barreira montada pelos militares e no meio do fogo cruzadoA praça de combate, como na última segunda-feira, foi o Viaduto José AlencarO ato pacífico seguiu até ali e sóA divisão aconteceu e a sensação é de que o céu acinzentouUm grupo de cerca de três mil pessoas, que marchava à frente, seguiu reto, caminhando calmamente em direção ao destino acordado, na Lagoa da Pampulha, enquanto uma minoria dobrou a via para se posicionar rente ao bloqueio feito pela PM na Avenida Antônio Abrahão CaramAli me separei do DanielSó voltaríamos a nos encontrar depois do confronto começar, já que a minoria rapidamente se multiplicou em milhares.

O combinado era que eu seguiria em frente, acompanhando o trajeto inicialNo entanto, ao andar um pouco mais, por cerca de dez minutos, senti o segundo arrepio do dia, ao olhar para trás e notar a avenida completamente tomada - o primeiro havia sido durante a marcha inicial, quando um homem desceu de rapel no Viaduto Angola e hasteou a bandeira do Brasil em cena inesquecívelQuando observei o horizonte, tive a dimensão de que pelo menos 100 mil pessoas tinham saído às ruasFoi quando decidi voltar para esperar os demais e percebi que os bandidos eram muitos e haviam dominado a frente do movimentoNa terça-feira testemunhei o tal grupo de mascarados aterrorizar o Centro de Belo Horizonte, mas eles mal conseguiam fechar o cruzamento da Avenida Afonso Pena com as ruas Tamoios e Espírito SantoNeste sábado, eles eram mais de três mil e estavam armados, com bombas, pedras e quaisquer objetos capazes de ferir militares e civis, dispostos a se aproveitar da abertura de pautas oferecida pelo movimento para pregar a violênciaE eles corriam em direção aos militares.

MANIFESTAÇÃO COMEÇOU EM CLIMA DE FESTA NO CENTRO DE BH: FOTOS

Num gesto meio impensado, decidi me adiantar à frente do grupo criminoso que avançava sobre os policiaisA ideia era ficar ao lado da ação, próximo à grade, registrando o confronto, o que inicialmente foi possívelNo entanto, depois de aproximadamente 20 minutos de ataques covardes praticados pelos mascarados - dos quais minha posição me livrava -, a PM respondeuGás lacrimogênio arde e a primeira bomba estourou ao meu ladoAssustei e desci em carreira em direção à Antônio Carlos, escutando discursos dos mais absurdos"Está vendo, é assim que eles nos protegem", berrou uma jovem que devia ter menos de 15 anosOra, até eu, com os olhos escorrendo, entendi a necessidade imposta pelo momentoAí, numa rápida olhada para cima, me peguei atrás dos vândalos e à frente da gente de bem, entendendo a sensação de quem está posicionado com os olhos para a Topa de ChoqueVeio a segunda resposta do batalhãoPara quem está do outro lado, porém atrás da "Faixa de Gaza", a sensação realmente é de medo e parece claro que a polícia está avançandoPode acontecer, mas hoje não - ao menos onde eu estavaEra só a sensação, porque quem continuava atacando ali eram os vândalos, que recebiam resposta na medidaNão posso dizer dos outros lugares e é extremamente complexo avaliar se houve excesso, mas naquele ponto, o mais crítico, foi assim.

Ao recuar um pouco, me peguei sentado à beira do viaduto de onde um jovem caiu na segunda-feiraLembro de ter pensado em como ali era alto e, ao perceber nova correria, decidi sair daquele ponto, passar pela área de confronto e me posicionar atrás da barreira militar, onde estavam os demais jornalistasDeu tempo de correr antes de alguma confusão no ponto críticoInfelizmente, três jovens não tiveram a mesma sorte, ficando dois em estado graveMais acima, abaixado por causa das pedradas, mostrei minha credencial do Estado de Minas, furei o bloqueio e reencontrei o SilveiraEu e ele reclamávamos de sinal e bateria dos celulares, respectivamente, quando surgiu uma nova onda de ataques, dos dois lados, e começou a aparecer gente machucadaUm senhor passou com a cabeça sangrandoDepois um homemE outro, este com a perna ferida pelos estilhaços que a bomba de efeito moral produzUm escudo da tropa de choque se partiu com uma bomba caseira, elaborada com bola de sinucaE assim a fumaça subiu e a cavalaria chegouA notícia que chegava da redação era de que comércios tinham sido depredados mais abaixo, mas não tinha como descer.

A Polícia Militar avançou e as coisas pareciam mais calmas, apesar da certeza e obviedade de que tinha gente machucadaFoi então que descemos e fomos surpreendidos por nova onda de gás, a mais forte de todasNão foi nova bomba, mas o resíduo químico que se solidifica e espalha pelo ar quando um carro passa na viaMesmo conhecendo a orientação de não coçar os olhos, a vontade foi irresistívelVi uma concessionária destruída e água jorrando de um jardimCorri até lá e molhei o rosto, o que aliviou, para depois piorarDaniel me acompanhou e também se arrependeu do feitoCustou, mas depois de alguns minutos pudemos abrir os olhos e observar o cenário de absoluta destruiçãoEram cinco lojas de veículos, todas alvo dos ataquesTinha desde computador partido na rua até carro destruídoNenhuma vidraça no lugarUm menino ainda tentava salvar o HD da máquina para furtá-loEntre nós, surgiu o Caveirão da Polícia Militar, que infelizmente precisou estrearAí começou nosso retorno.

Nos antecipamos aos militares e mais uma vez lá estávamos nós, no meio da multidãoE começou a descidaQuem era de bem, tentava apagar o fogo, tirar os móveis do meio da rua, arrastar para o canteiro as placas e grades destruídasTodos com semblante triste, em silêncioAlguns ainda gritavam palavras irritantes, destacando que sem violência não há revoluçãoPensei ser melhor ignorarAndamos rápido, mas no meio do caminho uma pausa foi inevitável para descansar o pé cheio de bolhasA cada metro vencido, a tristeza aumentavaNão sobrou radar em péNem placa, nem vidroA segunda-feira para os lojistas da avenida será de calculadora na mão, somando prejuízosEntre xingamentos, frases vazias, fogueiras em placas, materiais e máquinas para o BRT, chegamos ao Centro de BHLá, nova praça de combate.

Do que ocorreu no Centro não vimos muitoA sensação de insegurança era forte"Suas máscaras não aguentam o gás lá da Praça Sete", nos alertou um militar que tentou impedir a passagemDemos a volta e usamos outro caminho, vimos mais quebradeira, mais pessoas de bem desesperadas, presas em prédiosFicamos ao máximo que nossas forças e baterias aguentaramAí retornamos à redação pensando em como contar o diaPor fim, uma ligaçãoUm jovem pós-graduando, de 26 anos, telefonou à redação denunciando o que nossos olhos não presenciaramSegundo ele, às 23h, quando eu já escrevia este texto e os arruaceiros depredavam outros pontos da cidade, militares da Força Nacional de Segurança atacaram manifestantes que passavam pela Praça Sete, já próxima da tranquilidade, com mais bombas e golpes de casseteteMais um entre tantos finais tristes para um dia que começou extremamente bonito, com estudantes mostrando sua força, e desandou.

REPORTAGEM ACOMPANHOU MANIFESTAÇÃO PASSO A PASSORELEMBRE

Por Daniel Silveira
Quando ingressei na manifestação, acompanhado pelo colega de redação Emerson Campos, a passeata já estava no meio do viaduto que sai ao lado da rodoviária rumo à Antônio CarlosEra muita gente caminhando contenteSó nos demos conta do número de manifestantes na subida da avenida, depois do Conjunto IAPIA cada viaduto ou passarela por onde passávamos inúmeras pessoas se aglomeravam para reverenciar o cortejoPalmas e gritos animavam ainda mais os passantesAs palavras de ordem eram as mesmas ouvidas ao longo da semana: clamavam por mudanças, melhorias, justiça e dignidade.

Segui à frente da multidão durante a maior parte do tempoPor telefone, uma voz amiga me informou que lá no final havia clima de micaretaJuventude reunida sem festa me parece improvávelMas o que presenciei na maior parte do trajeto foi um ativismo coletivo, movido pela frustração diante do abuso político e econômico que privilegia pequenas elites em detrimento de uma população inteiraNão havia qualquer sinal de tensão no arNem mesmo os semblantes dos policiais militares que abriam a passagem para a manifestação denotavam qualquer suspense.

Ao chegarmos à mata da UFMG, pude ver, com nitidez, homens fardados se escondendo entre as folhas secas e árvoresEra o Exército BrasileiroAté então, nenhum problemaFoi exatamente naquele ponto que eclodiu o confronto da última segunda-feiraSegurança ali era mais que necessáriaMas foi pouco depois da manifestação parar em frente ao portão de acesso ao Campus da Universidade que se evidenciou a iminência de novo conflitoHavia autorização para a multidão virar a Avenida Santa Rosa, de onde poderia chegar à Orla da Lagoa da Pampulha"Ão ão ão, queremos o Mineirão", foi o grito que se ouvia na linha de frenteA passeata seguiu e quando chegou ao cruzamento com a Avenida Abrahão Caram, houve a dispersãoEnquanto a maioria seguia o trajeto autorizado, centenas correram em disparada na direção do estádioSegui o segundo grupo, Emerson o primeiroCerca de cem metros à frente, a Tropa de Choque estava posicionada atrás de alambradosDepois dela, um contingente policial impressionante (Força Nacional, canil da PM, cavalaria, Gate, Bombeiros - militares em número incontável).

Anarquistas, baderneiros, vândalosSei lá que nome se pode darPareciam facções criminosas, organizadas para disseminar o terrorRostos tapados, não queriam protestarIgnoravam os anseios do coletivoO objetivo claro do grupo era afrontar a lei e disputar poder com as forças do EstadoA determinação era clara: no perímetro determinado pela Fifa só entraria quem tivesse ingresso para o jogo da Copa das Confederações"Isso é inconstitucional", ouvi às dezenasOk, que isso seja questionado no Supremo Tribunal FederalNo lugar de razões ou causas, pedras, rojões e bombas caseiras, arremessadas incessantemente contra os militaresQuatro feridos, um deles gravemente no olhoNenhum contra-ataqueAcompanhei com o relógio e a investida contra a PM durou cerca de meia hora sem reaçãoSó então a Tropa de Choque, sem transpor os alambrados, começou a responder com bombas de efeito moralO confronto estava instaurado.

Por de trás da primeira barreira policial, formada pela Tropa de Choque, acompanhava assustado o que ocorria lá embaixoPoucos ainda estavam ali na Abrahão Caram, tentando disputar força com os militaresMas ao longe se ouvia inúmeras bombas e tirosO helicóptero Pégasus, da PM, fazia voos rasantes sobre a multidão"Precisamos de socorro, um menino caiu do viaduto", dizia um manifestantes vestido de jaleco branco que se identificou como estudante de medicinaSegundos depois, chega ao bloqueio policial um grupo, acompanhado por socorristas, carregando o menino de 16 anos feridoVi de perto o rosto dele ensanguentado, com poucos sinais de consciênciaA PM informou que o estado de saúde dele era grave, mas não havia risco iminente de vidaPouco depois, a informação de mais uma quedaOutro jovem, este ferido com muito mais gravidadeFraturas múltiplas, membros superiores e inferiores retorcidos no chãoBateu a cabeça no meio fioDisseram-nos, horas depois, que ele iria sobreviver – não sem sequelas.

GRUPO DE MASCARADOS COMEÇOU CONFRONTO COM A PM: FOTOS

Quando chegamos embaixo do viaduto, o ar era irrespirávelHavia muito gás lacrimogênio tomando conta de toda a áreaA Tropa de Choque, que já havia arrastado a multidão de volta para trás do portão de acesso ao Campus da UFMG, mantinha ataque incessante com bombas de efeito moral e tiros de bala de borrachaEis que surge o Caveirão, o imponente tanque de guerra da Polícia MilitarPrimeira vez que ele foi às ruas, garantiu o chefe de comunicação da corporaçãoSó então o grupo que ainda se posicionava ali decidiu recuarNo entorno, o que constatamos foi um cenário de completa destruiçãoTodas as concessionárias de veículos foram depredadasAs grades da universidade derrubadasHavia inúmeros focos de incêndio na avenida – em amontoados de lixo, barreiras plásticas de trânsito, cones, madeiras, canteiros de obras do BRT

Na volta ao Centro da cidade, por toda a extensão da Antônio Carlos, que percorremos novamente a pé, o que se viam eram as marcas do vandalismo, gratuito e generalizado, contra o bem público e privadoA PM era hostilizada no caminhoMuitos que ali estavam honrosamente lutando por um ideal foram feridos sem ter arremessado sequer uma pedra ou derrubado uma placaPresenciei um policial militar pedindo a outro balas de borracha"Todas as minhas foram pro saco", revelouAo perceber que eu o observava, e notando que sou jornalista, disfarçou ao receber os projéteisParece que os tiros não letais foram disparados a esmoA quantidade de bombas de gás lacrimogênio também pareceu exceder o necessário para dar fim ao confrontoForam tantas a ponto do ar ficar sufocante em amplo perímetro.

Ao chegarmos à Avenida Afonso Pena, exaustos e frustrados pela ação desordeira que estragou por completo a mobilização cheia de brilho na tarde, novo susto: a Praça Sete estava em guerraFomos impedidos pela polícia de seguir em frenteContornamos pelas ruas São Paulo e Carijós para chegar à praçaSó ouvíamos explosões e barulhos de helicópteroO cheiro do gás insuportável tomava conta da regiãoMuito fogo, muita sujeira e vários vândalos que, afastados da concentração de policiais, atacavam prédios, pontos de ônibus, lojas e placas de sinalizaçãoO clima era de muita tensão e retornamos à redaçãoAo chegarmos ao prédio, policiais o cercavamFomos recebidos pelos colegas assustados com a ameaça de ataque aos veículos de imprensa da capitalA sede de um deles foi evacuada às pressasSabiam os criminosos que nós, jornalistas que presenciamos o absurdo promovido na cidade, apontaríamos o dedo em riste: são eles.

Entre as inúmeras perguntas que me afligem após um dia de tantas emoções, destaco uma, quase lugar-comum: até quando os justos irão pagar pelos pecadores?