Os hospitais públicos de Belo Horizonte atendem quase 90 mil pacientes do interior todo mês, considerando a média de mais de 4,4 mil consultas diárias de segunda a sexta-feira, conforme levantamento da Secretaria Municipal de Saúde (SMSA)É como se toda a população de uma cidade de médio porte, como João Monlevade, no Vale do Aço, se transferisse a cada mês para a capital em busca de tratamento médico
Pela quantidade de veículos com placas do interior na Praça Hugo Werneck, na Região Hospitalar, é possível ter uma noção do volume de pessoas que buscam médicos em BH, diante da carência de profissionais em suas regiõesNa terça-feira, 20 ambulâncias e vans, 17 carros pequenos e 11 microônibus de prefeituras estavam estacionados na parte de baixo da Praça Hugo Werneck e na Avenida Bernardo MonteiroUm sem número de carros ficam estacionados em outros locais por falta de estacionamento na praçaEnquanto isso, uma multidão de pacientes, a maioria idosos e com doenças graves, aguarda por mais de cinco horas o retorno para casa, o que é possível somente quando o último passageiro é atendido em algum hospital.
De acordo com a SMSA, além dos 4,4 mil pacientes que se dirigem à capital para consultas especializadas, o número de internações de moradores de outras cidades também é significativo, com o fato se repetindo no caso de tratamentos especializadosDas 10 mil internações mensais, 4,3 mil são de pessoas do interior (43%)Dos 2, 2 mil pacientes que fazem hemodiálise mensalmente, 704 chegam de outros municípios (32%), e das 3,5 mil cirurgias eletivas programadas mensalmente, 1,4 mil são em pacientes de fora (40%)“Belo Horizonte é pólo de referência estadual para cerca de 700 municípios para procedimentos de média complexidade e para todos os 853 municípios para a alta complexidade”, informou em nota a SMSA.
Cada paciente ou acompanhante tem um motivo para correr riscos nas estradas e vir a Belo HorizonteNa terça-feira, a dona de casa Maria Aparecida Costa, de 64 anos, se levantou à meia-noite para pegar um microônibus da Prefeitura de Morada Nova de Minas, Região CentralUma hora depois, ao lado de mais 37 passageiros, começou a viagem de 305 quilômetros
Dentro de uma van, à espera da viagem de volta, os pais dos gêmeos Thales e Hester, de um mês e meio, estavam preocupados com os perigos nas estradasO balconista Vicente Silva, de 27, e a dona de casa Lecinda Rodrigues, de 25, moram no distrito de Santo Antônio do Norte, em Conceição do Mato Dentro, Alto Jequitinhonha, e precisaram dormir na cidade para viajar às 2h da madrugada“A menina está suando sem parar”, disse a mãe, que trouxe a criança a BH para descobrir a causa do problema“Na minha cidade é um médico para 10 mil pessoas e eles demoraram o dia inteiro para atender uma”, reclamou o pai“A estrada é muito perigosaSe eu já tinha medo antes, agora estou apavorada, temendo acontecer alguma coisa com os meninos”, disse a mãe.
NO MEIO DO PROTESTO
Há 15 dias, João Paulo da Silva, de 55, motorista da Secretaria de Saúde de Carandaí, Região Central de Minas, demorou onze horas para percorrer 137 quilômetros na volta para casa
Demora, fome e esperança
Os perigos nas estradas são apenas uma parte do sofrimento de quem vem do interior para receber atendimento médico em BHMuitos pacientes aguardam até sete horas debaixo de sol e chuva para voltar para casa e não têm dinheiro nem para comerPaula Araújo, de 28, vende sanduíches no local e se comove com doentes que passam o dia com um cachorro-quente“As pessoas ficam com pena e pagam para elesÉ de cortar o coração”, lamentou Paula.
A lavradora Alessandra Brás da Silva, de 25, que mora na zona rural de Lajinha, Zona da Mata, sabe bem o que é isso“Nem todo mundo aqui tem dinheiro para comerEstamos na hora da colheita lá na roça e estou com um dinheirinho”, disseEla já perdeu as contas de quantas vezes percorreu 750 quilômetros de ida e volta para levar a filha Maria Eduarda, de 3, a um médicoA criança fez cirurgia no coração em dezembro e antes disso foram mais de 30 viagensAgora, ela faz retorno a cada 15 dias.
O almoço da corretora de imóveis Débora Nunes, de 29, de João Monlevade, também foi um cachorro-quenteEla tem má-formação dos joelhos, anda com ajuda de muletas e gastou R$ 25 de táxi para se deslocar de um hospital no Bairro São Bento à Praça Hugo Werneck, onde embarcaria de volta para João Monlevade“Sobrou só o dinheiro do cachorro-quente”, disse Débora, lembrando que as prefeituras arcam apenas com o transporte e alimentação do motorista.
No fim da tarde, a preocupação era outra na praçaApesar da presença de uma base móvel da PM, jovens usuários de drogas assustavam as pessoasA dona de casa Maria de Lurdes Oliveira Santos, de 60, se trancou na van“Eles roubam a bolsa da gente”, disse ela, que havia saído de Bambuí no início da madrugada, ao lado de 15 pessoas espremidas numa van.
FISCALIZAÇÃO O DER informou que tem feito ações e fiscalizações em todo o estado para combater o transporte clandestino, independentemente da destinação e uso do veículo“Os fiscais avaliam a legalidade do transporte, condições do veículo, principalmente a questão da segurançaQuando constatada irregularidade, o veículo e condutor são multados”.
Foi informado também que veículos contratados por prefeituras para transporte de pacientes devem estar de acordo com o Decreto 44.035/05 e são regularmente fiscalizados pelo departamento“O controle da manutenção dos veículos é feito durante as operações e blitz e/ou administrativamente, mediante apresentação de laudo técnico emitido pelo Inmetro ou órgão por ele credenciado, a cada seis meses”, disse o DER em nota.
Três perguntas para...
Ricardo Felizardo Loro
TRATORISTA
Ricardo Felizardo Loro, de 20 anos, tratorista em Poços de Caldas, conseguiu retirar o filho, de 2 anos, da Kombi que pegou fogo na BR-381 no dia 3, mas perdeu a mulherOutras quatro pessoas morreram.
Vocês iam ou voltavam de Belo Horizonte na hora do acidente?
A gente retornava, por volta das 18hA gente tinha ido um dia antes, saímos às 22h, viajamos a madrugada inteira e chegamos às 7h em Belo HorizonteResolvemos tudo o que tínhamos que resolver e voltamos para Poços de Caldas, todo mundo apertado na KombiTinha mais uma criança que saiu do incêndio.
Não deu tempo você retirar sua mulher do carro?
Fui jogado longe, para fora da KombiVoltei para pegar meu menino e minha esposa, mas não deu tempoSó o filhoO fogo tomou conta de tudo.
Se houvesse atendimento médico adequado em sua cidade, as pessoas correriam menos riscos?
Com certezaMuitas vezes, a gente vai lá (Belo Horizonte) só para passar por nutricionista, só acompanhamentoO exame eles fazem aqui em Poços e mandam para Belo Horizonte, que envia o resultado de voltaAgora, vou enfrentar essa viagem sozinho com meu filhoEle pergunta pela mãe demaisSente falta, né?