O puxadinho de telhas de amianto e madeira foi construído acima do chafariz de pedra-sabão datado de 1761, em Ouro Preto. É também na antiga capital de Minas que um projeto de construção de túnel rasgando o subsolo próximo ao Centro tricentenário arrepia defensores do patrimônio histórico. Enquanto isso, ônibus de grande porte continuam a circular na rua asfaltada em meio ao casario erguido no Ciclo do Ouro, em Santa Luzia. A confusão de fios dos postes atrapalha a visão da Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Caeté, erguida em 1757 e cuja planta tem a assinatura de Manuel Francisco Lisboa, pai de Aleijadinho. Já em Congonhas, loteamentos avançam sobre sítios arqueológicos e joias coloniais são pressionadas pela mineração, poluição visual e descaracterização do casario. Seja qual for o endereço, os problemas decorrentes do crescimento urbano refletem a dificuldade de cidades coloniais conviverem com desafios do século 21, pondo em risco seu valioso acervo histórico.
Na semana passada, obras de trânsito na Praça Tiradentes, no coração de Ouro Preto, na Região Central, chamaram a atenção para o impasse entre conservação e desenvolvimento em uma cidade que viu sua frota de automóveis duplicar em uma década, passando de 13,3 mil veículos para 27,1 mil. Sob a justificativa de eliminar o estacionamento de veículos da praça, a prefeitura retirou pedras do calçamento destinado à passagem de pedestres e à orientação do trânsito. O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) não foi informado da intervenção e notificou a administração municipal para que reinstale as estruturas, parte de acordo firmado em 2008 para humanizar o ponto turístico.
Inquéritos para apurar intervenções em áreas de proteção se acumulam e, em Ouro Preto, as soluções pretendidas para resolver o problema do trânsito geram controvérsia e estão no alvo de processos. O MP acaba de abrir investigação sobre o projeto de construção pela prefeitura de um túnel de 270 metros no Centro Histórico. A proposta foi lançada na quinta-feira, com a assinatura do contrato da empresa que fará o projeto executivo, sondagens e estudos geotécnicos. Orçado em 12 milhões, o túnel deve passar atrás da Praça Tiradentes, servindo de rota para quem vai de Mariana a Ouro Preto.
A meta é que a transposição faça a ligação entre a Rua Padre Rolim, próximo ao prédio tombado da antiga Santa Casa de Misericórdia, até a Rua Conselheiro Quintiliano, nas imediações do Corpo de Bombeiros. O objetivo é retirar 40% do trânsito da praça. “Nosso receio é do impacto dessas intervenções sobre os bens do entorno. A construção está prevista numa área de alto risco geológico, interditada em períodos de chuva. Além disso, túneis têm a característica de atrair mais veículos”, ressalta o promotor de Justiça da 4ª Promotoria de Ouro Preto, Domingos Ventura de Miranda Júnior.
O secretário de Cultura e Patrimônio do município, José Alberto Pinheiro, garante a viabilidade da obra, que deverá ser executada com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento das Cidades Históricas (PAC Cidades Históricas), do governo federal. “Não existe impossibilidade para a engenharia, tudo é uma questão de técnica e custo. Contratamos o maior especialista em túneis do Brasil. A nossa preocupação é tirar o trânsito da Praça Tiradentes, preservando o Centro Histórico”, afirma. Segundo Pinheiro, o túnel e as polêmicas mudanças no trânsito na praça fazem parte de um projeto maior de mobilidade. “Vamos criar um receptivo na entrada da cidade e reformular o sistema de ônibus, para que os turistas não cheguem ao Centro de carro”, adianta.
BAGUNÇA TOTAL
Mas os impasses na antiga Vila Rica estão longe de se restringir ao tráfego de veículos, que se amontoam nas ruas estreitas da cidade patrimônio da humanidade, onde as ladeiras estão tomadas por ocupações irregulares em áreas de risco. Relíquia do século 18, a Igreja Padre Faria, no bairro de mesmo nome, tem sua beleza ofuscada pelos postes de iluminação instalados em frente ao templo, cujos sinos dobraram no dia da morte de Tiradentes, em 21 de abril de 1792. Há mais de oito anos o MP briga na Justiça pela substituição da iluminação. No Bairro Antônio Dias, o exemplo extremo da ocupação irregular avançando sobre o patrimônio: o chafariz da Rua Barão de Ouro Branco, de 1761, está totalmente sufocado por puxadinhos e adaptações nos imóveis vizinhos.
Construída bem rente ao paredão de pedras do monumento, a cozinha e a área de serviço da casa da empregada doméstica Lucimar Bastos, de 57 anos, foi erguida praticamente em cima da estrutura. Os canos ficam à mostra ao lado do chafariz, sem falar nas madeiras que sustentam os cômodos, além das telhas sem padrão, contrastando com a estrutura histórica. Lucimar, que sonha em um dia ter a escritura da casa, conta que a construção foi feita pelo marido. “Quando chovia, minha sala molhava toda. A gente fez isso na gambiarra. O Patrimônio falou com a gente que tem que ter um arquiteto, mas a gente já custa a ter dinheiro para o material”, diz.
A diretora de promoção do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), Marília Palhares Machado, aponta a raiz do problema: “O planejamento urbano no país não se consolidou como prática cultural nem incorporou a questão do patrimônio. Ele acaba vindo atrás, na tentativa de reparar os prejuízos”. O coordenador das promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico, Marcos Paulo de Souza Miranda, vê como possível a harmonia entre crescimento e preservação. “Não se trata de impedir o desenvolvimento. As necessidades urbanas têm que se adequar à realidade dessas cidades, e não o contrário. Na Europa, por exemplo, não há carros trafegando pelos centros históricos. Em São João del-Rei houve a despoluição visual do Centro e todos perceberam como a cidade ficou bonita”, exemplifica.
Na semana passada, obras de trânsito na Praça Tiradentes, no coração de Ouro Preto, na Região Central, chamaram a atenção para o impasse entre conservação e desenvolvimento em uma cidade que viu sua frota de automóveis duplicar em uma década, passando de 13,3 mil veículos para 27,1 mil. Sob a justificativa de eliminar o estacionamento de veículos da praça, a prefeitura retirou pedras do calçamento destinado à passagem de pedestres e à orientação do trânsito. O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) não foi informado da intervenção e notificou a administração municipal para que reinstale as estruturas, parte de acordo firmado em 2008 para humanizar o ponto turístico.
Inquéritos para apurar intervenções em áreas de proteção se acumulam e, em Ouro Preto, as soluções pretendidas para resolver o problema do trânsito geram controvérsia e estão no alvo de processos. O MP acaba de abrir investigação sobre o projeto de construção pela prefeitura de um túnel de 270 metros no Centro Histórico. A proposta foi lançada na quinta-feira, com a assinatura do contrato da empresa que fará o projeto executivo, sondagens e estudos geotécnicos. Orçado em 12 milhões, o túnel deve passar atrás da Praça Tiradentes, servindo de rota para quem vai de Mariana a Ouro Preto.
A meta é que a transposição faça a ligação entre a Rua Padre Rolim, próximo ao prédio tombado da antiga Santa Casa de Misericórdia, até a Rua Conselheiro Quintiliano, nas imediações do Corpo de Bombeiros. O objetivo é retirar 40% do trânsito da praça. “Nosso receio é do impacto dessas intervenções sobre os bens do entorno. A construção está prevista numa área de alto risco geológico, interditada em períodos de chuva. Além disso, túneis têm a característica de atrair mais veículos”, ressalta o promotor de Justiça da 4ª Promotoria de Ouro Preto, Domingos Ventura de Miranda Júnior.
O secretário de Cultura e Patrimônio do município, José Alberto Pinheiro, garante a viabilidade da obra, que deverá ser executada com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento das Cidades Históricas (PAC Cidades Históricas), do governo federal. “Não existe impossibilidade para a engenharia, tudo é uma questão de técnica e custo. Contratamos o maior especialista em túneis do Brasil. A nossa preocupação é tirar o trânsito da Praça Tiradentes, preservando o Centro Histórico”, afirma. Segundo Pinheiro, o túnel e as polêmicas mudanças no trânsito na praça fazem parte de um projeto maior de mobilidade. “Vamos criar um receptivo na entrada da cidade e reformular o sistema de ônibus, para que os turistas não cheguem ao Centro de carro”, adianta.
BAGUNÇA TOTAL
Mas os impasses na antiga Vila Rica estão longe de se restringir ao tráfego de veículos, que se amontoam nas ruas estreitas da cidade patrimônio da humanidade, onde as ladeiras estão tomadas por ocupações irregulares em áreas de risco. Relíquia do século 18, a Igreja Padre Faria, no bairro de mesmo nome, tem sua beleza ofuscada pelos postes de iluminação instalados em frente ao templo, cujos sinos dobraram no dia da morte de Tiradentes, em 21 de abril de 1792. Há mais de oito anos o MP briga na Justiça pela substituição da iluminação. No Bairro Antônio Dias, o exemplo extremo da ocupação irregular avançando sobre o patrimônio: o chafariz da Rua Barão de Ouro Branco, de 1761, está totalmente sufocado por puxadinhos e adaptações nos imóveis vizinhos.
Construída bem rente ao paredão de pedras do monumento, a cozinha e a área de serviço da casa da empregada doméstica Lucimar Bastos, de 57 anos, foi erguida praticamente em cima da estrutura. Os canos ficam à mostra ao lado do chafariz, sem falar nas madeiras que sustentam os cômodos, além das telhas sem padrão, contrastando com a estrutura histórica. Lucimar, que sonha em um dia ter a escritura da casa, conta que a construção foi feita pelo marido. “Quando chovia, minha sala molhava toda. A gente fez isso na gambiarra. O Patrimônio falou com a gente que tem que ter um arquiteto, mas a gente já custa a ter dinheiro para o material”, diz.
A diretora de promoção do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), Marília Palhares Machado, aponta a raiz do problema: “O planejamento urbano no país não se consolidou como prática cultural nem incorporou a questão do patrimônio. Ele acaba vindo atrás, na tentativa de reparar os prejuízos”. O coordenador das promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico, Marcos Paulo de Souza Miranda, vê como possível a harmonia entre crescimento e preservação. “Não se trata de impedir o desenvolvimento. As necessidades urbanas têm que se adequar à realidade dessas cidades, e não o contrário. Na Europa, por exemplo, não há carros trafegando pelos centros históricos. Em São João del-Rei houve a despoluição visual do Centro e todos perceberam como a cidade ficou bonita”, exemplifica.
Palavra de especialista
Luciana Feres
Diretora de Patrimônio do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-MG)
Conciliação necessária
É impossível congelar o tempo e o desenvolvimento urbano, mas esse processo tem que vir ancorado na preservação. A especulação imobiliária pode levar à descaracterização. O trânsito gera poluição, trepidação e pode causar abalos estruturais nos imóveis. Ouro Preto e Diamantina sofrem com grandes eventos, com consequências negativas, como a urina dos frequentadores nas ruas. Além de políticas de restauração, as cidades coloniais têm que prezar pelo planejamento, com pavimentação adequada – calçamento em vez de asfalto –, áreas de estacionamento fora do Centro Histórico, transporte público de qualidade e alternativas para os passageiros, como carruagens, ciclovias e ônibus dimensionados às suas estruturas.
Luciana Feres
Diretora de Patrimônio do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-MG)
Conciliação necessária
É impossível congelar o tempo e o desenvolvimento urbano, mas esse processo tem que vir ancorado na preservação. A especulação imobiliária pode levar à descaracterização. O trânsito gera poluição, trepidação e pode causar abalos estruturais nos imóveis. Ouro Preto e Diamantina sofrem com grandes eventos, com consequências negativas, como a urina dos frequentadores nas ruas. Além de políticas de restauração, as cidades coloniais têm que prezar pelo planejamento, com pavimentação adequada – calçamento em vez de asfalto –, áreas de estacionamento fora do Centro Histórico, transporte público de qualidade e alternativas para os passageiros, como carruagens, ciclovias e ônibus dimensionados às suas estruturas.