Jornal Estado de Minas

Mineiros de Ouro: Arte de fazer a roda cantar

Aposentado que já construiu carros de boi, veículo usado na ocupação dos sertões e cultuado no interior do estado, fala do ofício e diz que está disposto a ensinar

Arnaldo Viana
Altamiro de Paula Ribeiro: "Estou pronto para ensinar a quem quiser aprender. As ferramentas eu tenho. A pessoa não pode medir distância para aprender" - Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press.


O cantor, compositor e repentista baiano Caxangá, já falecido, que fez história também como apresentador no rádio mineiro, cantava assim: “Eu sou ferreiro, carpinteiro e carapina, quero que você me ensina a lavar roupa sem molhar”Ao ouvir os versos do artista popular, Altamiro de Paula Ribeiro, personagem do bem-querer do povo do município de Ibertioga, na Região Central do estado, abre um largo sorriso e diz: “Difícil essa aí, de lavar roupa sem molhar, né?”Com as mãos, é difícil mesmoTalvez impossívelTanto que ninguém nunca apareceu diante de Caxangá para ensiná-lo.

Altamiro, de 64 anos, ou simplesmente Tatá, se não sabe lavar roupa sem molhar, malha o ferro e forja peças, como faz o ferreiro; sabe carpinteirar, e bem; e marceneira como ninguémSão apenas algumas de suas habilidadesHá outras, como a que o fez famoso: construtor de carros de boi, aqueles de madeira, pesados, de rodas cantadeiras, puxados por juntas (parelhas) de bois, os chamados bois de carro, fortes, calmos e obedientesArte que Tatá aprendeu com o pai e que vê morrer, devagar, porque não há mais ninguém disposto a segui-la


Se hoje o carro de boi é um veículo alegórico, reverenciado todos os anos, em julho, em Ibertioga, sem ele a ocupação de certos sertões mineiros seria impossívelNão há como imaginar o surgimento de povoados e grandes fazendas de café e de gado naqueles tempos em que não havia caminhões e tratores sem um meio de transporteSe as tropas de burros e mulas eram para cargas leves, os carros de boi eram para o serviço pesado, grandes quantidades de sacarias e móveis, além de pedras, areia, madeira e adobe para a construção dos casarões

Era bonito vê-los gemendo morosamente no fim do estradão.

Geraldo Paulino Ribeiro, pai de Tatá, como tantos outros nas quebradas de Minas que talharam o jacarandá para dar conta das encomendas de fazendeiros e empresas que principiavam a ocupação de terras, são, imerecidamente, anônimosImerecidamente porque hoje o carro de boi é reverenciado em festas e desfiles, não somente em IbertiogaPela sua importância e tradiçãoSer dono de um, de rodas cantadeiras, é como ter na garagem um Ford picape fabricado em 1929E não tem preçoSe a arte de construir carro de boi não é mais atraente, madeira de lei agora, como o jacarandá, é coisa rara.


Tatá começou na labuta cedo, como a maioria naqueles temposAos 8 anos já ordenhava vacas, na profissão chamada retireiroE tinha que levar o leite à fábrica de laticíniosAos 10, começou a ajudar o pai a fabricar carros de boiE foi observando o trabalho de Geraldo Paulino

Daí até aprender a arte foi um puloMas não é um ofício simplesUm carro de boi exige a meticulosidade de um projetista de automóvelQuestão de milímetrosUm errinho de nada no desenho do mião (roda) ou na romã do eixo, o carro fica comprometido, principalmente por um detalhe“Carro que não canta vira carroça”, diz Tatá


Milimétrico

Tatá começou na labuta cedo, como a maioria naqueles tempos. Aos 8 anos já ordenhava vacas, na profissão chamada retireiro. - Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press. Para não cometer erros, é preciso destreza no manejo da serra, do serrote, da enxó, do grupião, da plaina, da pua, do prumo, da lima, da grosa, só para falar de algumas ferramentasPor isso é importante ser, no mínimo, carpinteiro e carapinaPara cantar, o eixo é untado com azeite de mamona“É uma arte que, infelizmente, está acabandoAntigamente, no festival de carros de boi aqui em Ibertioga, desfilavam pelo menos 100Na última, agora em julho, havia no máximo 15”, conta TatáEle participou da festa durante anos“Todos os anos desfilava com um carro cheio de milhoAs pessoas levam prendas, que são leiloadas em benefício da paróquia”.


“O trator com carretinha substituiu o carro de boi nas fazendas”, diz, para explicar um dos motivos pelos quais o ofício deixou de ser atraenteNão só os tratoresOs caminhões tambémNão há mais demanda“Meu pai criou três filhos e eu cinco com esse trabalho.” Tatá, como tantos outros criados no interior das Gerais, estudou só até a terceira série (correspondente ao terceiro ano do ensino fundamental) porque tinha que trabalhar para ajudar os paisAposentou-se, com pensão hoje de R$ 675Para sobreviver com a mulher, complementa a renda com o dinheiro da venda do leite ordenhado de uma dúzia de vacas.


“Hoje, mesmo se quisesse, não conseguiria mais construir um carro de boiÉ preciso trabalhar muito tempo agachado e não teria mais a ajuda de minha mulher, que sofreu um derrame e ficou com os movimentos prejudicadosTenho orgulho de ter aprendido essa arte e de saber fazerEstou pronto para ensinar a quem quiser aprenderAs ferramentas eu tenhoA pessoa não pode medir distância para aprender.” A lição é boaE aprender foi também um ofício para TatáTanto que, além de construtor de carros de boi, carapina, marceneiro e retireiro, faz serviço de pedreiro e sabe plantar e colherVida longa para Altamiro de Paula RibeiroE que o carro de boi não desapareça do cenário das Minas Gerais

 

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