Em dois anos, o físico de Vanessa tornou-se insuficiente para sustentar o corpo em 1,68m de altura. “Quer um pedaço de bolo com café, Vanessa? Acabou de sair do forno”, oferece a atendente do Centro de Recuperação para Dependentes Químicos, no Bairro da Floresta, Leste de Belo Horizonte. Com o olhar vago, ela aceita, pede mais e come com sofreguidão.“Parece que o crack dá uma broca no estômago. Ela acabou de almoçar”, diz a irmã, a ex-usuária de crack Sandra Maria,que está levando a mais velha para se internar, após dois meses decobranças. Vanessa conta que, para se despedir da droga, passou os cinco dias anteriores usando a pedra, sem comer e sem dormir.
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Vanessa conseguiu vaga para se internar por nove meses em Uberaba. É início de fevereiro e ela precisa passar antes em casa, uma invasão de terra às margens de uma rodovia na capital mineira. Terá de pegar uma muda de roupas e documentos. No barracão de único quarto, encharcado por goteiras das chuvas de verão, ela divide espaço com a mãe de 84 anos, quatro filhos, duas irmãs e um sobrinho. Os barracões vizinhos exalam cheiro forte de maconha em plena luz do dia.
Com os olhos vidrados e dificuldades para se concentrar, a diarista retira um saco plástico com fotos e documentos dos filhos do meio de farrapos e objetos de uso pessoal. Os papéis estão incrivelmente secos
Não tem roupas decentes que as sentem no corpo esquálido. Segundo a irmã, Sandra Maria, Vanessa herdou o alcoolismo da mãe. “Antes, ela só bebia. Depois que perdeu os filhos, enfiou a cara no crack”, afirma. A Justiça teria mandado para um abrigo B., de 16 anos, J., de 12, V., de 11, B., de 8, V., de 6, e B., de 2. Os quatro mais velhos conseguiram fugir e voltar para casa. Aos 16, B. já teve dois filhos, também encaminha dos à adoção
Terapia
Não foi fácil, mas Vanessa e a irmã conseguiram as passagens para seguir para a institui ção no Triângulo Mineiro. Depois do primeiro mês na Casa Dia de Uberaba, a diarista pede para ligar para a equipe do Estado de Minas. Como se estivesse falando com alguém da família, conta que está bem e que gosta do tratamento. Está com 56 quilos, se gue a rotina de acordar cedo e estudar a Bíblia. Garante que não sente falta das drogas: “Não posso perder esta oportunidade para mudar de vida. Quero sair daqui, arrumar serviço e recuperar minhas meninas”, conta ela, que aproveita para fazer um desabafo: “Ninguém da minha família liga aqui para mim nem atende quando eu ligo. Estou precisando de algumas coisas, porque vim para cá sem nada. Minha mãe está recebendo a Bolsa-Família dos meus meninos e todo meu dinheiro está com ela”, diz.
Com dois meses e meio de internação, Vanessa tem a primeira autorização para visitar os parentes. Ao chegar está bem disposta, pesa cerca de 90 quilos. Revê os filhos que permaneceram com a avó e ajeita os papéis para pegar de volta as crianças que estão no abrigo. Antes, porém, precisa comprovar que esteve em desintoxicação e que está trabalhando. Em duas agências de emprego se candidata à vaga de doméstica.
Uma semana se passa e nenhuma proposta aparece. A esperança dura pouco. Sem a retaguarda dos remédios e da equipe de especialistas que ajudam a enfrentar a fissura, sentindo falta das crianças e sem ter o que fazer em casa, morando na favela, Vanessa sofre uma recaída no crack.
Em meados de julho, a equipe de reportagem faz contatos com a família da diarista, tentando encontrá-la. Nada. Ela se perde nos becos da favela, dorme no barraco de usuários. Voltou também a demonstrar comporta mento transgressor. Só procura a mãe e os filhos perto da data de receber o pagamento do Bolsa-Família. Deixa R$ 100 e gasta o restante em crack, diz a irmã Sandra. “Sai por aí fazendo noiadinhos, filhos que já nascem dependentes químicos no sangue. Sou a favor de pessoas como ela ser esterilizadas e impedidas de ter barriga”, radicaliza Sandra.
Apesar da irritação, Sandra manda chamar a irmã para que a acompanhe na reunião dos Narcóticos Anônimos, onde receberá chaveiro em homenagem pela abstinência das drogas. Depois de passar a tarde no barracão, Vanessa some no morro, fissurada em busca da droga. Sandra nem tenta esconder a frustração com a irmã.
A dependente voltou a roubar objetos em casa. Está com cerca de 40 quilos, rosto encovado, unhas escurecidas pelo cachimbo. Depois de dias na rua, busca comida no barracão da mãe. Não está sozinha. Trouxe a jovem empregada doméstica F., de 26 anos, que conheceu três dias antes, na Pedreira Prado Lopes. “Gastei quase R$ 300 do meu salário. Comprei pedra para todo mundo lá. Não sou viciada, nem sei tragar direito. Começo a ver vultos e fico com medo de as pessoas me atacarem”, explica F.
Ela trabalha com carteira assinada na residência de um casal em um condomínio de Nova Lima, com um salário razoável e mantendo dois filhos pequenos. Há dois meses no vício, não sabe lidar com a síndrome do pânico e tampouco se assume como dependente. “Hoje foi a primeira vez que faltei ao serviço. Normalmente consigo usar o crack à noite e trabalhar de manhã. É só tomar um café bem forte”, conta, chateada ao lembrar que, por falta do dinheiro gasto com a pedra, deixará de levar para os filhos o pão doce com cobertura de creme.