O crack é frequentemente comparado a uma epidemiaComo tal, não respeita fronteiras e viaja com aqueles que contaminaFoi na bagagem deles que chegou ao interior do Brasil, deixando para trás a crença de que fosse um mal das metrópolesMarcus Vinícius Dias, um dos 5.900 moradores de Gonzaga, cidade pacata do Vale do Rio Doce, a 306 quilômetros de BH, se “contagiou” em um município um pouco maior: Machado, no Sul de Minas, com cerca de 38 mil habitantesEra junho de 2012 quando o rapaz, contratado com um grupo de trabalhadores da construção civil, conheceu a pedra, que usou intensamenteContinuou depois de voltar à cidade natal, até ser encontrado na zona rural, irreconhecível, em outubro do mesmo anoDepois dos seis meses de tratamento e da recaída, está tentando recuperar a própria história.
O CRACK COMO ELE É: confira todas as reportagens da série especial
Quando a equipe do Estado de Minas o encontrou pela primeira vez, em 27 de dezembro de 2012, ele estava internado, prestes a completar dois meses de abstinênciaMas os efeitos da dependência ainda eram evidentesCom os pés muito inchados, Marcus estava impedido de fazer uma das coisas de que mais gosta: jogar futebolA sonolência e a dificuldade de se concentrar denunciavam outros rastros da droga, mas também dos medicamentos para enfrentar a abstinência
Apesar da dificuldade com a memória, ele se esforça para contar que teve o primeiro contato com entorpecentes aos 20 anos
A relação ficou tumultuada e o casal chegou a se separar por quatro vezesEm uma das reconciliações, nasceu o pequeno Henrique, hoje com 5 anos, em junho de 2008Cerca de 40 dias depois, Marcus embarcou para trabalhar na construção civil em Portugal, onde a compulsão pela droga só fez aumentar
A passagem pela Europa só é mencionada por Marcus no segundo encontro com a equipe do EM, em 7 de fevereiro deste anoEle já havia largado os medicamentosCom os pés desinchados, a alegria voltava aos poucos ao rosto, em grande parte levada pelo futebol, atividade quase diária entre os companheiros de tratamento
Mas a diversão proporcionada pela bola dá lugar ao relato sombrio da passagem por PortugalForam cerca de 18 meses, o suficiente para conhecer e usar outras drogas, como a heroína“Na Europa eu vi de tudoO consumo de drogas por lá é frenético”, resumeO retorno para o Brasil ocorreu em janeiro de 2010Estava totalmente diferente“O jeito de falar mudou e ele estava mais nervosoMas o problema é que não admitia que era viciado”, conta a mulher.
Até junho de 2012, Lívia travou uma verdadeira batalha para convencer o marido a se tratar“Depois ele foi trabalhar no Sul de Minas e aí conheceu o crackEntrou de cabeça”, dizA cada vez que Marcus voltava para ver a família, chegava mais nervoso e decadente“A deterioração foi muito rápidaEle emagreceu demais e entrou em depressão”, conta Lívia
O encontro seguinte da equipe do EM com Marcus Vinícius ocorre cinco meses depois, na casa do irmão dele, o comerciante Milton, no Bairro Ressaca, em Contagem, na Grande BH, onde o rapaz se recupera de uma cirurgia no olhosGrande incentivador da recuperação, Milton conta como resgatou o irmão, que estava sumido havia dois dias em GonzagaEra fim de outubro do ano passado quando o comerciante saiu de Contagem, seguiu pistas e informações até encontrar a boca de fumo rural, onde foi recebido por um traficante armado“Ele confirmou que meu irmão estava lá e me mandou esperarPouco depois, chegou de moto com o Marcus na garupa e me entregou meu irmão como um monte de lixo.”
A chegada de Marcus a Ravena, distrito do município de Sabará, na Grande BH, para ser internado ocorreu em 3 de novembro“Estava realmente muito malO crack me fez afundar”, diz o rapazDepois de recuperar 19 quilos, Marcus parece mais serenoDiz que a sensação de se aproximar do fim do tratamento é de renascimentoO irmão adverte: “O mundo continua da mesma forma e as amizades estão no mesmo lugarCabe a você se policiar para não se deixar envolver com as coisas erradas”.
As palavras têm um tom de quem teme o piorNão sem razãoAo concluir o tratamento, Marcus voltou para a cidade natal e reencontrou a mulher, no início de maioMas, em uma visita à casa da mãe, em uma cidade vizinha, o rapaz caiu de volta no crackSó reapareceu no dia seguinte, ainda drogadoEm junho, voltou a beber, passagem para novas recaídas
O retrocesso derrubou novamente a confiança da professora, que mandou Marcus de volta à casa do irmãoO mais recente contato da equipe do EM com Marcus ocorreu na última semana de julho, quando ele já estava de volta a GonzagaLá, conseguia se manter de pé depois de arrumar trabalho na mercearia de outro irmão, onde é responsável pelas entregasEnquanto o futuro ainda é um ponto de interrogação, a mulher, Lívia, afirma que chegou ao limite“Avisei que não quero mais problema, canseiEle está fazendo o possível para mudar”, dizMas o crack ainda é um fantasma“Ele continua bebendo cerveja e já chegou a fumar cigarro normalCreio que ainda não é o momento para issoApesar de não ter havido recaídas, não é hora de falar de cura ou libertação total.”
No seu lugar
“A droga não tem esse poder que damos a elaOs efeitos vão depender da relação entre a droga, a pessoa e suas expectativasDevemos estar atentos às pessoas, à nossa relação com as pessoas e a como somos como pessoas e com as pessoasEnfim, nunca deixar a droga ocupar esse lugar que não é dela”
Raquel Barros, psicóloga, fundadora da Lua Nova, entidade que acolhe jovens mães solteiras em Sorocaba (SP) e que inspirou o plano nacional de enfrentamento do crack
Direto no cérebro
O medo de recaídas, citado em coro por dependentes em recuperação como Marcus Vinícius, tem razão de serApesar de ter o mesmo princípio ativo da cocaína, o crack tem memória química muito forte, só comparável à da heroínaSua chegada ao sistema nervoso central é quase imediata: de 8 a 15 segundosGera euforia e excitação, imediatamente seguidas de depressão, delírio e "fissura" por novas doses.
Sofrimentos mentais
Segundo o psiquiatra e homeopata Aloísio Andrade, o índice de recaídas dos usuários de crack ainda é alto no Brasil por falta de diagnósticos consistentes e de medicação básicaEle explica que a maioria dos quadros graves de dependência apresenta também transtorno mentalAssim, quando presentes, quadros como esquizofrenia, depressão e demência precisam ser tratados de forma simultânea.
3 mil
reuniões por semana ocorrem no país em grupos de Narcóticos AnônimosOs endereços podem ser verificados no site www.na.org.br.