Não é simples atingir a marca de um ano separado do crack. Nesse intervalo, Sandra Maria viu muitos tropeçarem, inclusive as irmãs Alessandra e Vanessa (retratada nesta série). Já ela se prepara para receber o chaveiro dos Narcóticos Anônimos, que simboliza um ano de participação nas reuniões. Confessa ter medo de comemorar: “No mundo da droga, a gente se acostuma a viver em uma montanha-russa de emoções. Se tiver uma notícia ruim ou uma dose extra de felicidade, corre o risco de cair de novo. É preciso aprender a lidar com a vida normal”, filosofa.
Sandra Maria se apresenta sem reservas aos interlocutores como ex-menina de rua, ex-prostituta e ex-moradora de cracolândias em vários estados brasileiros. Ela só não admite ser chamada de ex-dependente: “Posso até esquecer meu nome, mas nunca que sou uma pessoa em recuperação”. E argumenta, com conhecimento de causa: “Não existe ex-drogada. Quem já conheceu as drogas não fica curado. É preciso vigiar a si mesma 24 horas. O crack é como o primeiro namorado, que você nunca esquece. O relacionamento pode até terminar, mas ele nunca mais vai sair da sua cabeça”.
Aos 7 anos, Sandra Maria já estava no olho do furacão. Ela e os nove irmãos foram obrigados a trabalhar o dia inteiro, pedindo esmola em sinais de trânsito. A agenciadora era a própria mãe, hoje com 87 anos, alcoólatra, que usava os filhos para sustentar o vício. Na lida, Sandra conheceu a cola de sapateiro, que ajudava a aliviar a revolta. Fugiu de casa. Juntou-se às turmas de meninos de rua. Conta que, por volta dos 14, 15 anos, sentiu vergonha de andar descalça.
Para conquistar calçado, casa e comida, passou a vender o corpo. Foi quando conheceu as “bolinhas”: comprimidos usados pelas prostitutas para encarar o rodízio de clientes sem rosto e sem limite da zona de meretrício. Tudo comercializado livremente nos arredores da Rua Guaicurus, no Centro de Belo Horizonte.
MONSTRO
“Jesus, me dê sobriedade”, suplica Sandra Maria, ao telefone. Em dezembro, ela liga para dizer que está se sentindo sobrecarregada, depois que tomou a iniciativa de internar a própria irmã Vanessa e de tentar internar a outra, Alessandra, que fugiu. No minuto seguinte, ela volta a rir das próprias misérias: “Essas drogadas me deixam louca! Mas é a loucura delas que me cura. Fico cada vez mais sóbria ao vê-las entorpecidas, lutando contra o monstro comedor de cérebro (o crack)”, compara. Segundo ela, as irmãs só aparecem em casa para trocar de roupa e roubar objetos para vender.
No mesmo mês, Sandra Maria foi contratada para tomar conta de um restaurante, ganhando R$ 40 por dia. Por pouco tempo. No mês seguinte, perdeu o emprego, ao se desentender com uma colega, que descobriu seu passado de dependente. Ela não se abala. Pega bico em uma cooperativa, onde descarrega caminhões. “É difícil demais arrumar emprego. O passado é um fantasma que nos acompanha para sempre.”
Na virada do ano, Sandra faz questão de entrar em contato com a equipe do EM e desejar um feliz 2013. Está esperançosa e não desiste de recuperar a família. Com ela, são 10 irmãos, a metade envolvida com álcool e drogas. Sandra Maria não esconde a mágoa em relação à mãe, que parou de beber há oito anos, aos 79, ao se converter à religião evangélica, depois de perder dois filhos dependentes de crack e uma filha, que morreu de cirrose.
Sandra, por sua vez, teve quatro filhos. Os dois mais velhos foram entregues ao abrigo. “Todo ano eu ia visitar, levava presente no aniversário e no Natal. Mas tinha certeza de que seria melhor para eles.” Nenhum dos dois se envolveu com drogas. Welbert, de 26 anos, é enfermeiro, e Jonathan, de 20, trabalha em uma conservadora de limpeza. As meninas, Larissa e Monique, de 13 e 10 anos, moram com o pai.
Em junho, Sandra já poderia receber homenagem dos Narcóticos Anônimos por um ano longe das drogas. Entretanto, fez questão de adiar a comemoração por mais um mês. “Gosto do grupo. É a melhor coisa que existe participar das reuniões, porque as pessoas elogiam a gente”, afirma. Sandra merece mesmo um prêmio. Desde que largou o serviço braçal da cooperativa, só conseguiu arranjar emprego em um bar. Suportou por dois meses o assédio dos clientes, que insistiam em pagar uma cerveja à garçonete. “O dependente químico não pode nem passar perto do álcool, que é a chave de todas as drogas”, avisa.
No hall de entrada dos Narcóticos Anônimos, Sandra acende um cigarro, o único vício que lhe restou. “Eu era uma máquina química”, revela a mulher, que já usou álcool, tíner, cola, maconha, LSD, cocaína, cogumelo e crack. Depois de largar o serviço no boteco, Sandra Maria passou a dar faxinas. Quer juntar dinheiro para comprar uma churrasqueira profissional. “Já que ninguém quer dar emprego a uma dependente, vou ser dona do meu próprio negócio. As pessoas tentam me empurrar de volta para o crack, mas não vão conseguir. Eu vou vencer”, ensina Sandra Maria, que poderia dar aula de determinação.
Por dentro do vício
Na série de reportagens que termina hoje, o Estado de Minas contou as histórias de mineiros que se viciaram em crack. Por seis meses, os repórteres Guilherme Paranaiba e Sandra Kiefer acompanharam a trajetória de 10 pessoas e relataram momentos de trevas, sombras e luz vividos por elas. No grupo – um retrato de como a droga não distingue classe social – há quem não tenha conseguido vencer a dependência química em seis meses, quem ainda enfrente altos e baixos e os que lutam para evitar recaídas.