Aos 12, J. F. já fumava cigarros. Aos 13, 14 anos, bebericava cerveja nas festinhas em Corinto, no interior de Minas, mineiro como outras adolescentes. Depois do baile de debutantes, aos 15, deixou de beber escondido. Durante um show de rock, experimentou maconha e se sentiu doida demais. Aos 19, cheirou cocaína com um namorado. “Me senti mais falante e inteligente. Adorei!” Aos 23, passou a morar com um traficante. “Durante quatro anos, cheirei montanhas de pó todos os dias. Não tenho mais cartilagem no nariz. Levei essa vida até o dia em que ele passou a ter overdoses e a me agredir fisicamente. Voltei para a casa dos meus pais, que me receberam de volta”, conta seu drama ao EM em entrevista em 11 de dezembro.
A luta de um ex-policial para abondonar o crack
Recaída e desespero de um usuário de crack
Fugindo do ex-namorado traficante, J. F. foi parar em Portugal, na casa de uma amiga. Atravessou cinco anos limpa, movida a base de álcool. Trabalhava em um café. Até o dia em que fez um curso para ser DJ e foi promovida a ocupar tal função em uma danceteria. Para aguentar a noite, dava um ‘teco de pó’ no banheiro. Foi apresentada ao after, prolongamento das festas em clubes privê, voltado para um grupo selecionado de pessoa com direito a drinques e drogas.
Nesse ambiente, conheceu a base, como era chamado o crack em terras portuguesas na década de 2000. “Tinha meu próprio cachimbo, discreto, que ficava dentro do bolso e cabia uma pedrinha. Quando dava vontade, acendia em um canto e fumava”, conta. Com a pedra, porém, J. deixou de ser produtiva. Emagreceu 20 quilos e a pele encheu de feridas, que não dava para disfarçar com maquiagem. “Meu patrão me mandou embora, disse que os convidados vips estavam comentando que eu parecia estar com aids. O namorado terminou comigo. Ele usava só cocaína”, diz.
Em Portugal, J. F. recusou-se a deixar o apartamento do ex-namorado, na Quinta da Boa Vista, e transformou o local em ponto de drogas. Distribuía entorpecentes e fumava o crack recebido em troca do favor. Paralelamente, torrou todas as economias arrecadadas em cinco anos de trabalho. Nessas alturas, J. já estava com 32 anos e se descobriu grávida. “Botei um fim naquela vida. Liguei para minha mãe e disse que tinha uma notícia boa e outra ruim para contar. A boa era que eu estava voltando para o Brasil. A ruim era que eu estava grávida e não sabia como contar para o meu pai que seria mãe solteira nem tinha ideia de quem era o pai do bebê. Mas eles me aceitaram de volta”, explica.
J. diz que a decisão de voltar agradou aos pais que gostaram da ideia de ser avós e de ter menos despesas sustentando a filha desempregada e agora grávida em Portugal. “Depois, fiquei sabendo que o meu namorado ligava para o Brasil e ameaçava me colocar na rua. Eles não entendiam muito bem o que estava acontecendo e pensaram que tinha sido envolvida em um sistema de tráfico de mulheres. Enviaram rios de dinheiro para o cara”, conta.
Assim que soube da gravidez, até o momento em que embarcou no avião para o Brasil, J. garante que não consumiu mais drogas. “Sei que consigo largar as drogas, porque já consegui uma vez. Meu maior medo era minha filha nascer deformada. Fiquei limpa durante toda a gravidez e a amamentação. Ao todo, um ano e meio sem usar nada. Nem álcool. “Minha primeira internação foi em função da minha filha. Antes de ela nascer, eu só pensava em usar droga até morrer”, admite J., que quer retomar o curso de direito e se tornar delegada de polícia para prender traficantes e reaver o dinheiro que gastou com as drogas.
DESINTOXICAÇÃO
J. F. está internada pela segunda vez, em dois anos. Novamente, a família do Bairro Sion, na Zona Sul de Belo Horizonte, concordou em bancar os custos da desintoxicação da filha. Apesar de ter 37 anos, ela comporta-se como adolescente. No primeiro dos nove meses de tratamento, fugiu da clínica ao levar um pito da coordenadora. Deixou o tratamento sem permissão. Ao bater a campainha, notou algo diferente. Deparou-se com a mãe (que está frequentando as reuniões da Família de Caná como co-dependente) com uma postura diferente.
Ao contrário das outras vezes, em que V. sempre recebia a filha de braços abertos, agora J. sentiu o estranhamento. “Minha mãe nem me deixou entrar em casa. Disse que eu tive sorte de o me pai ter saído, por que ele iria me matar se visse que havia fugido da clínica. E me lembrou que havíamos mentido para minha filha, dizendo que eu tinha ido passar uma temporada na Europa. Se ela me visse em casa, como ficaria a cabecinha dela? Meu irmão saiu de uma audiência no fórum e me trouxe de volta”, conta a interna, que ainda teve de pedir para ser aceita de volta e atrasar sua saída em um mês, como punição pela falha.
Jacqueline diz ter medo do pai, que está aposentado e tem participação ativa em um sindicato. Das lembranças da infância, conta o dia em que invejou uma vizinha de unhas longas, que gostava de beber e fumar. Como castigo, o pai teria servido a ela um uísque duplo e um maço de cigarros. “Agora você vai fumar e beber até arrebentar… Ele achou que eu iria tomar nojo daquilo. Fiquei tontinha, vomitei, nem sabia tragar… Mas comecei a gostar a partir daquele dia.” Enquanto contava sua história, em regime de internação e acreditando que o pai estava brigado com ela, J. nem imaginava que D. estava do lado de fora da instituição, tocando a campainha. Com receio de ser reconhecido, em frente a uma casa de atendimento a adictos, D. vinha saber as últimas notícias da filha.
Em 19 de março, depois de dois meses e meio de silêncio, Jaqueline concorda em voltar a conversar com a reportagem. A retomada do contato foi conseguida sob a mediação do Padre Osvaldo Gonçalves, fundador da Família de Caná. As ‘meninas’ internadas para recuperação do uso de drogas são devotas do padre, a quem consideram um santo. “Ele é como Deus para mim. Padre Osvaldo acredita tanto na nossa recuperação, que passei a acreditar que eu possa realmente viver sem as drogas. Nas palestras, ele costuma dizer que é simples ficar livre do crack, basta não fumar”, conta.
Na fase da maior fissura pela droga, nos primeiros meses da internação, J. sonhava que estava chegando na boca de fumo e, quando ia acender o cachimbo do crack, aparecia padre Osvaldo para impedir o gesto. “No início, a gente sonha que está fumando a droga. Sente até o gosto, pois o sonho é muito real. A medida em que o tempo vai passando, o sonho se modifica e você passa a sonhar que está a ponto de usar, mas chega alguém para impedir. Hoje, já sonho que estou nas festas e estou tomando coquetel sem álcool, refrigerante. O pior já passou”, revela.
J. está a um mês e meio de ser liberada, em 10 de maio, quando ocorre a cerimônia da passagem e a interna ganha uma Bíblia e uma missa em sua homenagem, celebrada pelo padre Osvaldo. “Aqui há muita rotatividade e poucas conseguem chegar até o fim. Estou quase lá”, afirma J. Ela precisa cumprir um mês a mais, além dos nove meses obrigatórios, devido ao episódio da fuga logo que entrou na casa.
Segundo J., cada organismo reage de um jeito, mas parar de usar crack na primeira internação é muito difícil. “É igual tirar carteira de motorista, sabe? Uns passam de primeira no teste, outros de segunda. Eu vou passar de segunda”, diz ela, confiante. “Na primeira vez, a pessoa não tem muita noção de que vai parar de vez. Pensa que está só ‘dando um tempo’, mas a recaída é muito ruim e dá medo de chegar de novo no fundo do poço. Já sei que sou impotente perante as drogas e gasto até o último centavo. Sou ansiosa e tenho compulsão para comprar e para usar. Tenho de substituir a droga por algo bom, saudável”, compara.
Na primeira internação, J. não admitiu por completo o processo perante os conhecidos. Inventou uma viagem para justificar os meses que estava fora, internada. Desta vez, até os vizinhos já sabem do tratamento. “Outro dia, uma vizinha com quem nunca conversei se aproximou e disse que está rezando muito para Nossa Senhora Aparecida me ajudar”, brinca. Segundo ela, até a motorista do especial da filha dela ficou interessada em saber o motivo do desaparecimento da mãe. “Não adianta esconder, sabe?”, explica J., que também notou mudanças na atitude do pai. “Ele não vai me dizer nunca, mas sei que ele está buscando ajuda porque o papo dele já é outro. Ele chegou a dizer para mim que “sabe da minha dependência’ e admitiu que ‘nós erramos juntos’. Foi um grande passo”, reconhece.
Entusiasmada, J. planeja os detalhes da própria homenagem. A Bíblia será entregue a ela pela filha de 4 anos, que tem o mesmo nome da mãe. Na primeira visita em casa, J. recebeu autorização para permanecer por três dias com a família. Na visita seguinte, ficou mais cinco dias. “Mamãe, eu te amo. Da próxima vez, você vai ficar aqui para sempre?”, perguntou a filha. Neste momento da entrevista, Jaqueline fica emocionada. “Minha filha é o meu presente, é a minha salvação. Sem ela eu não teria motivo algum para viver, tentei suicídio várias vezes. Agora, é diferente. Não tenho a menor dúvida de que nunca mais vou usar nada. A droga não vai ter mais lugar na minha vida. É uma fase ruim que já passou”, jura J., que prometeu passar o contato da equipe de reportagem aos pais, que poderiam ter voz na matéria.