Jornal Estado de Minas

Médicos brasileiros formados no exterior têm dificuldade para voltar ao país

Profissionais enfrentam batalha. Além de passar pelo Revalida, têm de desbancar o preconceito dos colegas

Tiago de Holanda

Médica formada em Cuba, Daniele do Amaral Siva, de 31 anos, relata dificuldade financeira para revalidar o diploma. Ela chegou a gastar cerca de R$ 15 mil, incluindo custos de hospedagem - Foto: João Miranda/ESP.EM/DA.Press


Quando Aline de Sousa Magela decidiu cursar medicina em Cuba, muita gente estranhou“Você está ficando doida? Por que vai pra lá?”, perguntaramA moça continuou resoluta“Falta informaçãoCuba não tem só charuto, rum, mulher, carro velho”, dizVários brasileiros que resolvem se tornar médicos em outros países da América Latina enfrentam desconfiança, inclusive na volta à terra natal, onde, para trabalhar, precisam passar por um processo de revalidação do diplomaÉ nessa etapa que muitos esbarram.

Os brasileiros “repatriados” são maioria entre os que participam do Revalida, como é conhecido o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira, processo adotado por 37 universidades públicas neste ano, com 1.851 inscritosNas duas edições anteriores da prova, criada em 2011, os 953 brasileiros inscritos representaram 61% dos 1.561 candidatos e a maioria era formada na Bolívia (424), em Cuba (256), Argentina (93) e Espanha (39)Em segundo lugar, estiveram os bolivianos (275), seguidos por peruanos (85), colombianos (52) e cubanos (32).

As universidades públicas que não aderem ao Revalida também podem ratificar diplomas estrangeiros, desde que ofereçam graduação em medicinaÉ o caso da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde a belo-horizontina Aline, formada em Cuba, conseguiu revalidar seu canudo em 2012“As provas da UFMG são acessíveis, cobram o que um clínico geral deve saber

Outras universidades exigem conhecimentos muito especializados”, constata a moça de 27 anos

Desde menina, Aline decidiu que se tornaria médica na ilha caribenha“Eu lia muito e vi que lá a saúde pública funcionavaNão fui por falta de opção e sim porque quis”, lembra ela, que nem chegou a prestar vestibular no BrasilEm 2005, começou a estudar na Escola Latino-Americana de Medicina (Elam)Assim como os colegas, morava em um albergue em Havana, cedido pelo governo, que também oferecia os livros a serem lidos no curso“Recebemos uma formação integral, aprendemos um pouco de cada especializaçãoTivemos muito práticaHavia aula o dia inteiro, a faculdade me absorvia o tempo todo”, conta.
Aline se graduou em 2011 e, na volta ao país natal, percebeu que, além de precisar revalidar o diploma, teria que vencer a suspeita de colegas“Quando sabem que me formei em Cuba, muita gente se espanta e pergunta logo: ‘Revalidou onde?’ Quem se forma fora sofre uma desconfiança maior, até conseguir provar sua competência”, constata
O processo de revalidação torna menos difícil a busca pelo reconhecimento“Pode não ser indispensável para alguém atestar que é médico, mas acaba servindo para quebrar uma barreira, um preconceito”, acreditaA clínica geral trabalha em um consultório de cirurgia plástica em BH e quer se especializar na áreaAos fins de semana, faz plantão em um pronto-socorro em Juquitiba (SP).

SONHO

Moradora de Betim, na Grande BH, Noranei Delma de Araújo, de 33, também sonhava ser médica“Sempre estudei em escola pública, sabia que no Brasil seria muito difícil entrar numa boa faculdade”, contaSoube que o curso em Cuba era bom e decidiu se candidatar a uma bolsaAs aulas na Elam começaram em 2004 e se concluíram em 2010“Lá os professores se doam aos alunos, ficam à disposição em tempo integralAprendemos a atender o paciente de forma humanizada, sem olhá-lo como mercadoria”, conta.

No ano seguinte, Noranei buscou, sem sucesso, revalidar o diploma na UFMG, na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e pelo Revalida“Na época, eu trabalhava, não pude me preparar muito bemAlém disso, a prova da UFMT foi injusta, cobrou conhecimentos extremamente específicosE a do Revalida foi muito extensa e cansativa”, lembraEm 2012, Noranei prestou novamente os três processos e passou na primeira etapa da UFMG, mas não foi aprovada em uma das especialidades básicas, ginecologia/obstetríciaTeve que cursar uma disciplina da graduação, em uma fase chamada de complementaçãoAgora, diz que apenas aguarda sua documentação ser analisada pela universidade.

Noranei quer se especializar em pediatria ou geriatriaE, depois de obter o registro no Conselho Regional de Medicina, pensa em se inscrever no programa federal Mais Médicos, que oferece bolsa de R$ 10 mil a profissionais que queiram trabalhar no interior e em periferias de grandes centros, na área de atenção básica“Quero contribuir com a população brasileira”, dizEla não se intimida com a possibilidade de atuar em locais com pouca infraestrutura“Em Cuba, aprendemos a fazer um bom exame físico e a interrogar bem o pacienteHá muita atenção para a prevenção e a promoção da saúde”, ressalta.