Jornal Estado de Minas

DILEMA ENTRE A RUA E O ABRIGO

Moradores de rua querem ajuda, mas reclamam do tratamento em abrigos

Moradores de vias públicas rejeitam abrigos da PBH e pedem apoio para mudar de vida. Em 2005, recenseamento apontava cerca de 1 mil pessoas vivendo nas ruas da capital. De lá para cá, dobrou para 2 mil, segundo a Pastoral de Rua.

Sandra Kiefer Tiago de Holanda
Sebastião reclama: "abrigo é pior que cadeia, tem horário para entrar, comer, dormir, acordar. A gente não sabe quem está deitando ao lado, e tem muito roubo" - Foto: Paulo filgueiras/EM/D.A Press


Um dia depois de a Câmara de Dirigentes Lojistas da Savassi (CDL/Savassi) cobrar providências da prefeitura para os moradores de rua, equipes de reportagem do Estado de Minas conversaram com mendigos, usuários de crack e portadores de sofrimento mental sobre os motivos de insistirem em permanecer debaixo de viadutos, marquises, calçadas e terrenos vagos de Belo HorizonteOntem, diversas barracas de lona já estavam de volta aos locais de onde foram retiradas por agentes da prefeitura na segunda-feiraEm 2005, o censo da população de rua indicou cerca de mil pessoasO número dobrou em oito anos, segundo a percepção da Pastoral de Rua de BH, passando de 2 mil.

Qual seria a melhor forma de ajudá-los a resgatar a dignidade e a saúde, já que os programas sociais não dão resultados satisfatórios? Muitos dizem que gostariam de ter uma casa e oportunidade de emprego e estudoEntre os dependentes químicos, boa parte garante que quer fazer tratamentoEm geral, há reclamações contra abrigos e clínicasMas a prefeitura afirma que os moradores de rua são resistentes ao cumprimento de regras e horários nos abrigos

“O que eu mais quero é sair da rua”, afirma Sebastião Soares do Amorim, de 53 anosDepois ele se cala, o rosto enrubesce e, apesar do esforço em se mostrar forte, ele começa a chorar“Com o dinheiro que ganho, não sobra nada”, dizSentado em um banco na Praça da Savassi, Centro-Sul de BH, ele conta que trabalha há 12 anos como catador de material reciclável e costuma pernoitar perto dali, numa esquina da Rua dos Inconfidentes.

Sebastião morava com a mãe e os irmãos em Divinolândia de Minas, no Vale do Rio Doce

“A gente passava muita fome”, relataQuando tinha 12 anos, a avó o trouxe para morar com ela no Alto Vera Cruz, Região LesteUm dia, na hora do almoço, foi buscar comida na cozinha e a avó o repreendeu“Disse que eu só ia comer o que sobrasse, depois de todo mundoAí, decidi viver na rua”, recorda ele, que estudou até a 4ª série do ensino fundamental.

Ele está nas ruas há mais de 35 anosJá pernoitou no albergue da Rua Conselheiro Rocha, no Bairro Floresta, administrado pela prefeitura e uma associação espírita“É pior que cadeiaTem horário para entrar, comer, dormir, acordarA gente não sabe nunca quem está deitando ao ladoTem muito roubo”, critica ele, que exala hálito de cachaça
“Gosto de beber e fumar cigarroNunca experimentei outras drogas”.

Apesar de preferir a rua, Sebastião se queixa de funcionários da prefeituraContou que alguns deles, acompanhados de “uns quatro policiais”, levaram quase todos os seus pertences: “O carrinho com o material que eu catei, minha roupa de dormir, cobertorDisseram que não querem morador de rua na Savassi”.

BRIGAS Wellington Romão Ramos, de 29, mora na rua há cerca de cinco anosVivia com a mãe, o padrasto e os irmãos numa casa em Venda Nova“Estava usando muita droga, discutia muito dentro de casaFoi por isso que fui embora”, lembra“Hoje fumo baseado e tomo um gorozinho”, dizEle ganha a vida lavando carros nos arredores da Praça Carlos Chagas (praça da Assembleia), no Santo Agostinho, Centro-Sul“Às vezes, faço bicoServente de pedreiro..O que surgir encaro”.

Ele costuma pernoitar ali perto, na Avenida Álvares CabralMostra ferimentos recentes na nuca, orelha esquerda e face“Isso foi ontem (segunda-feira)Um cara me pediu um cigarro e eu não quis darUm homem que estava com ele me deu uma garrafada por trás”, relataApesar dos riscos, prefere a rua a dormir em albergues: “Lá é muita treta, uma brigaiadaTem neguinho que rouba mesmo, não pode ver nada dos outros”.

Na tarde de ontem, Wellington estava deitado em um colchonete no coreto da praça, acompanhado de outros moradores de ruaA seu lado, sua namorada, a ex-manicure Gabriela Vieira, de 32, na rua há um ano“Nossa vontade é arrumar uma casa, mas não temos dinheiroA prefeitura podia oferecer um cômodo com banheiro para todo mundoE dar oportunidade de trabalho para a gente pagar (o imóvel) e se sustentar”, disse o rapaz.

 Decepção na cidade grande

Ânderson Luiz Martins, de 40 anos, era um dos moradores de rua que, na tarde de ontem, faziam fila em frente ao albergue da Rua Conselheiro RochaEle vivia com a mãe e irmãos em João Monlevade, na Região CentralChegou a BH há seis meses, querendo melhorar de vida“Me enganei, quebrei a caraSó arrumo biquinho, servente de pedreiro, ajudo a descarregar qualquer coisaÉ a conta de comer mesmo”, lamentaEra a terceria vez que pernoitaria no albergue“Prefiro dormir na rua, mas venho por causa da comida”, disse“Dorme ladrão, maconheiro, bebum, tudo juntoTem muito rouboNa primeira vez, levaram minha mochilaReclamei com os funcionários, mas não adiantou nada”.

Vigia do albergue, Paulo Roberto Flor de Maio, de 54, diz que cerca de 400 pessoas dormem no albergue a cada noiteHá quatro beliches em cada quartoAs luzes são apagadas às 21h e às 7h todos os “hóspedes” já devem ter ido emboraPaulo confirma as reclamações: “Tem gente com problema de bebida, de drogaTodo mundo tem algum problemaQuando começa briga, a gente tem de intervirMas aqui roubam de tudo: tênis, cuecaÉ muito difícil descobrir quem roubou”.

 

Fila de moradores de rua para pernoite no albergue na Rua Conselheiro Rocha, no Bairro Santa Tereza, Região Leste de BH - Foto: Paulo filgueiras/EM/D.A Press