De pouco adiantou assentar pedras com as pontas viradas para cima embaixo da Viaduto da FlorestaA tentativa antiga da Prefeitura de Belo Horizonte de espantar com a iniciativa moradores de rua e usuários de droga não deu resultadoNo lugar, instalou-se uma excêntrica comunidade, cujo estilo está resumido na inscrição de uma das três vigas do viaduto que lhe serve de teto: “Vida louca vida”Embaixo de cada uma das estruturas há um colchão de casalJuntos, eles acomodam os três casais formados no convívio da ruaEm mais cinco colchões de solteiro vivem os outros integrantes desta nova família que, apesar de estar em trapos e nem sempre dispor de comida, é preferida ao abrigo municipal ou à própria casa
Quem fala em nome da turma móvel de 10 a 12 pessoas é Robson da Silva Pereira, de 45 anos, que se apresenta como engenheiro civil e conta já ter morado durante 18 anos em Torino, na Itália, onde deixou mulher e filhosAlém de “parlar italiano”, ele arranha francêsComeça a falar mais alto do que os outros, quando quer impor respeito: “Sabe, dona, todo mundo aqui já teve a experiência de acordar sentindo o cheiro de café coado na hora, de bater ponto e voltar para casa à noite, deitar na cama e dormir tranquiloSabe por que estou aqui e larguei para trás uma Mercedes coupé? Foi por orgulho ferido”
Para permitir a conversa da equipe de reportagem com a sua “família” (é assim que Robson se refere aos outros), ele quer saber o motivo da entrevista
Paloma ajuda na organização da “casa”, que tem prateleiras e uma espécie de criado-mudo ao lado de cada cama, onde são guardados objetos pessoaisMobília que a Prefeitura de Belo Horizonte promete não mais tolerarNa estante próxima à cozinha estão um relógio marcando a hora certa, um cubo mágico, porta-retratos e um vidro de pimenta“Ei, pessoal!,”, cumprimenta a auxiliar de servente Gleiciane Batista, de 26, atual mulher de RobsonNo outro lado do passeio, os alunos da Escola Municipal Paulo Mendes Campos acenam para o grupoNa semana anterior, tiraram R$ 50 do cofrinho para oferecer em doação
O grupo é informado de que se trata de matéria sobre a tentativa da prefeitura de revogar a liminar que a impede de recolher pertences dos moradores de rua“Quer dizer então que vão dar uma casa para gente?”, pergunta, com ironia, o ex-cobrador de ônibus Márcio Quirino de Araújo, que chega repentinamente no meio da conversa“Só quero dizer uma coisa: o prefeito não vai acabar nunca com os moradores de rua em BHVocê sabia que tem morador de rua em Juiz de Fora, no Brooklin, no mundo inteiro? Os mendigos são um problema da sociedade, um problema da família”, opina Paloma, dizendo ter deixado para trás uma casa com a avó em Igarapé
“Eu era mecânicoAgora, lavo carros”, explica José Francisco, companheiro de PalomaEle conta que já teve carro próprio e que gostava de andar bem arrumadoAgora, anda sujo“Ainda não tomei banho hoje, mas não volto para o albergueOutro dia, passei a tarde lavando carros para comprar um chineloFui passar a noite no abrigo e, quando acordei, tinham levado tudo”, protesta o rapazMas, conforme a “regra” do viaduto da Floresta, todos devem tomar um banho diário e andar calçadosAs vasilhas são lavadas em bacias e é proibido usar bebidas e drogas na presença de crianças
Neste momento, a turma toda deita falaçãoRobson aparece para impor respeito“Psiu! Sábio é aquele que escutaTolo é o que despreza as boas palavras”, diz o homem, com os olhos injetados pelo álcoolOs outros, ao menos os que não estão dormindo, sentam-se no sofá e passam a prestar atenção nas palavras do “chefe”Depois de refletir na questão da liminar para a retirada dos pertences dos moradores de rua (cada um deles guarda uma cópia), Robson explica o raciocínio que será adotado pela comunidade“Veja bem: queremos ter uma vida dignaEstou passando por uma fase difícil e já estou há 10 anos na ruaSe a prefeitura arrumar para a gente um pedaço de terra, a gente sai daqui agora mesmoPode trazer o caminhão que vai todo mundo junto, porque somos uma famíliaE, mesmo tendo um braço só, eu mesmo construo a casa para a gente”, garante Robson, exibindo o braço esquerdo com cicatrizes de queimaduras de um rojão.