De pouco adiantou assentar pedras com as pontas viradas para cima embaixo da Viaduto da Floresta. A tentativa antiga da Prefeitura de Belo Horizonte de espantar com a iniciativa moradores de rua e usuários de droga não deu resultado. No lugar, instalou-se uma excêntrica comunidade, cujo estilo está resumido na inscrição de uma das três vigas do viaduto que lhe serve de teto: “Vida louca vida”. Embaixo de cada uma das estruturas há um colchão de casal. Juntos, eles acomodam os três casais formados no convívio da rua. Em mais cinco colchões de solteiro vivem os outros integrantes desta nova família que, apesar de estar em trapos e nem sempre dispor de comida, é preferida ao abrigo municipal ou à própria casa.
Quem fala em nome da turma móvel de 10 a 12 pessoas é Robson da Silva Pereira, de 45 anos, que se apresenta como engenheiro civil e conta já ter morado durante 18 anos em Torino, na Itália, onde deixou mulher e filhos. Além de “parlar italiano”, ele arranha francês. Começa a falar mais alto do que os outros, quando quer impor respeito: “Sabe, dona, todo mundo aqui já teve a experiência de acordar sentindo o cheiro de café coado na hora, de bater ponto e voltar para casa à noite, deitar na cama e dormir tranquilo. Sabe por que estou aqui e larguei para trás uma Mercedes coupé? Foi por orgulho ferido”.
Para permitir a conversa da equipe de reportagem com a sua “família” (é assim que Robson se refere aos outros), ele quer saber o motivo da entrevista. “Pode falar o que quiser, meu bem. Aqui você é completamente livre! Não precisa se preocupar com a gente”, intervém o travesti Paloma, nascido Alessandro Dione Marra, que, na ausência de Robson, responde pela coordenação do espaço. Mora há um ano debaixo do viaduto da Floresta com o companheiro, José Francisco Silva Neto, de 32. “Sou mais feliz na rua do que em casa, onde não sou aceita como mulher”, diz Paloma, sorvendo um gole de cachaça vendida na garrafa PET do tipo caçulinha.
Paloma ajuda na organização da “casa”, que tem prateleiras e uma espécie de criado-mudo ao lado de cada cama, onde são guardados objetos pessoais. Mobília que a Prefeitura de Belo Horizonte promete não mais tolerar. Na estante próxima à cozinha estão um relógio marcando a hora certa, um cubo mágico, porta-retratos e um vidro de pimenta. “Ei, pessoal!,”, cumprimenta a auxiliar de servente Gleiciane Batista, de 26, atual mulher de Robson. No outro lado do passeio, os alunos da Escola Municipal Paulo Mendes Campos acenam para o grupo. Na semana anterior, tiraram R$ 50 do cofrinho para oferecer em doação.
O grupo é informado de que se trata de matéria sobre a tentativa da prefeitura de revogar a liminar que a impede de recolher pertences dos moradores de rua. “Quer dizer então que vão dar uma casa para gente?”, pergunta, com ironia, o ex-cobrador de ônibus Márcio Quirino de Araújo, que chega repentinamente no meio da conversa. “Só quero dizer uma coisa: o prefeito não vai acabar nunca com os moradores de rua em BH. Você sabia que tem morador de rua em Juiz de Fora, no Brooklin, no mundo inteiro? Os mendigos são um problema da sociedade, um problema da família”, opina Paloma, dizendo ter deixado para trás uma casa com a avó em Igarapé.
“Eu era mecânico. Agora, lavo carros”, explica José Francisco, companheiro de Paloma. Ele conta que já teve carro próprio e que gostava de andar bem arrumado. Agora, anda sujo. “Ainda não tomei banho hoje, mas não volto para o albergue. Outro dia, passei a tarde lavando carros para comprar um chinelo. Fui passar a noite no abrigo e, quando acordei, tinham levado tudo”, protesta o rapaz. Mas, conforme a “regra” do viaduto da Floresta, todos devem tomar um banho diário e andar calçados. As vasilhas são lavadas em bacias e é proibido usar bebidas e drogas na presença de crianças.
Neste momento, a turma toda deita falação. Robson aparece para impor respeito. “Psiu! Sábio é aquele que escuta. Tolo é o que despreza as boas palavras”, diz o homem, com os olhos injetados pelo álcool. Os outros, ao menos os que não estão dormindo, sentam-se no sofá e passam a prestar atenção nas palavras do “chefe”. Depois de refletir na questão da liminar para a retirada dos pertences dos moradores de rua (cada um deles guarda uma cópia), Robson explica o raciocínio que será adotado pela comunidade. “Veja bem: queremos ter uma vida digna. Estou passando por uma fase difícil e já estou há 10 anos na rua. Se a prefeitura arrumar para a gente um pedaço de terra, a gente sai daqui agora mesmo. Pode trazer o caminhão que vai todo mundo junto, porque somos uma família. E, mesmo tendo um braço só, eu mesmo construo a casa para a gente”, garante Robson, exibindo o braço esquerdo com cicatrizes de queimaduras de um rojão.