A multiplicação de moradores de rua em Belo Horizonte deixou unidades de atendimento especializado do município com lotação esgotada. Os dois abrigos, duas repúblicas e um albergue para a população com trajetória de rua estão com as 680 vagas ocupadas. A falta de espaço pode ser obstáculo para os planos da prefeitura de agir com maior rigor diante da ocupação de áreas públicas – na semana passada, o prefeito Marcio Lacerda anunciou que pretende orientar a fiscalização a retirar objetos como colchões e eletrodomésticos de moradores de rua. Para abrigar toda a população de rua da cidade, seria necessário praticamente dobrar a capacidade dos abrigos, considerando as 1.164 pessoas identificadas no último Censo da População de Rua, de 2005. O levantamento, porém, já está defasado: pelos cálculos da Pastoral de Rua, o contingente já passa de 2 mil.
Tanto o Abrigo São Paulo como o Albergue Tia Branca, as maiores unidades especializadas no atendimento dessa população, com 400 e 150 vagas, respectivamente, estão lotados. Somente em setembro, 140 pessoas foram barradas na entrada do Serviço de Acolhimento Institucional para a População de Rua e Migrante, mais conhecido pelo antigo nome de Albergue Noturno Tia Branca, localizado na Rua Conselheiro Rocha, no Bairro Floresta. “Há uma demanda cada vez mais crescente por atendimento institucional na cidade”, reconhece a pedagoga Soraya Romina, coordenadora do Comitê de Acompanhamento de Políticas para a População de Rua. “Estamos atentos a isso”, acrescenta.
Enquanto as três novas unidades não começam a funcionar, os abrigos atuais enfrentam dificuldades para convencer moradores de rua a aceitar regras de convivência. “Minha caixa, minha vida” é a inscrição da atual moradia de José*, de 63 anos, improvisada com restos de caixa de papelão exatamente em frente ao Albergue Tia Branca. Ao lado, há um fogareiro próprio para esquentar comida e um banco velho, de pernas bambas como as do dono, que passou o dia bebendo. À noite, a partir das 18h, o aposentado José entra na fila para dormir dentro do albergue, que oferece cama limpa, comida, banho e roupa lavada, sem custos. Com capacidade para 320 moradores de rua e 80 migrantes, o Tia Branca foi obrigado a instituir um sistema de credenciamento, como forma de regular o fluxo de pessoas, que cresce a cada dia. Quem tem carteirinha entra fácil. Quem não tem corre o risco de ficar de fora.
“Sou filho deste albergue e tenho prioridade, porque estou aqui há oito anos. Mas você já viu a quantidade de pessoas do interior que andam aparecendo na capital?”, compara José. De fato, o último censo da população de rua de BH mostrou que 40% dos entrevistados eram de fora de Belo Horizonte. Entre 10 e 15 homens moram diante do albergue. Negam-se a passar pela triagem do Tia Branca, que exige o cumprimento de regras mínimas de convivência, como horários, higiene pessoal e silêncio. Preferem ficar do lado de fora, falando mal dos serviços oferecidos. Questionam haver suspensões pelo uso de álcool ou drogas, brigas, promiscuidade e furtos. Casos de violência contra o colega, reincidência no porte de drogas ou usar arma podem levar à suspensão definitiva.
“Não vou com a cara de nenhum dos quatro seguranças daqui. Quando dá nove horas da noite, eles apagam a luz e mandam todo mundo calar a boca”, reclama um deles, revoltado por ter sido suspenso. O sistema parece funcionar, pois a média é de um segurança a cada 100 homens, sendo que, mês passado, não houve registro de uma única ocorrência policial.
“Quer saber a verdade mesmo? Os caras preferem ficar do lado de fora porque, quando cai a noite, começam a passar pessoas de bem distribuindo sopão, marmita, pão e leite. Dentro do albergue, é uma refeição só”, compara o marceneiro Vítor*, de 34 anos, que também aguarda na fila até dar a hora de entrar. Ele pede para não ser identificado, sob risco de ser impedido de frequentar o estabelecimento. Percebe como problemas do lugar a dificuldade extra para arranjar emprego ao fornecer o endereço do albergue na ficha do cadastro. “Fora os percevejos, não tenho nada do que reclamar”, completa.
Problemas
É geral a reclamação contra a infestação de percevejos ou muquiranas. A direção do albergue reconhece o problema. Trocou até os estrados das camas, na tentativa de identificar a origem do surto. Em vão. A cada imigrante infectado, voltam os percevejos. Na sexta-feira, os dormitórios passaram por um processo de fumacê, sob orientação da Zoonoses, na tentativa de combater a praga. Cerca de 70% dos homens recusam-se a tomar banho, que não é obrigatório. “Já tentamos colocar funcionário na porta vigiando. A pessoa fingia estar debaixo do chuveiro, mas saía com a toalha seca. Quando era feita a observação a respeito, o sujeito molhava a toalha na pia e entregava. Só serviu para aumentar os custos com lavanderia”, revela Gladston da Silva Lage, gerente de apoio comunitário e coordenador do albergue, ligado à Associação Grupo Espírita O Consolador.
Apesar dos problemas, Gladston Lage compara o albergue a um “hotel cinco estrelas”, com a mudança das instalações para o Bairro da Floresta. Até 2010, funcionava nas proximidades da Pedreira Prado Lopes, em galpões improvisados. O gasto é de R$ 40 diários per capita, que inclui o pagamento de 70 funcionários, serviço terceirizado de lavanderia, água, luz e encaminhamento para 14 convênios para vagas de emprego. Ele ressalta que o albergue tem a função de oferecer proteção social de caráter transitório. “As pessoas têm de entender que não podem morar aqui. É preciso respeitar o prazo de cada um, mas encaminhá-los de volta para sua cidade, reinserir na família ou nas bolsas-moradia”, diz ele, lembrando que o lugar conta com regras rígidas para lembrar que a vida em sociedade é trabalhosa.
* nomes fictícios
Censo começa este mês