A reportagem do Estado de Minas investigou a composição dos descartes e o destino das caçambas dispostas em Belo Horizonte para mostrar que esquemas como esse, de desrespeito às leis ambientais e de deposição ilegal de resíduos, imperam por toda a Grande BHO resultado mais grave vem com as chuvas, na forma de enchentes causadas por drenagens de vias bloqueadas, assoreamento de cursos d’água, poluição, riscos de desabamentos e acidentes com veículos.
Especialistas apontam que o florescimento de esquemas irregulares são resultado do aquecimento da indústria da construção civil, em um quadro de fiscalização deficiente e de falta de locais adequados para depósito e reciclagem do material que sobra dos empreendimentos das grandes cidades brasileirasNo rastro das caçambas que partem especialmente de Belo Horizonte foram encontradas áreas de transbordo que não separam produtos perigosos de material inerte e que amontoam resíduos que deveriam ser descartados de forma controladaHá também caçambeiros que depositam sua carga nas vias ou em aterros clandestinos
Para se ter uma dimensão do problema, a Superintendência de Limpeza Urbana (SLU) de BH recolheu no ano passado 223,5 mil toneladas de entulho, sendo 120 mil (53,6%) descartes clandestinos em lotes vagos, vias públicas e margens de cursos d’águaUm volume semelhante de material de construção daria para erguer 1.770 habitações popularesO maior projeto de moradias populares da capital, o Minha casa minha vida do Jardim Vitória II, tem apenas 180 unidades a mais.
INDICAÇÕES
Ignorado pelas autoridades, o bota-fora clandestino do Bairro Veneza, em Neves, é velho conhecido dos caçambeiros
O mais falante do grupo, um rapaz com menos de 30 anos, admitiu descartar entulho em vias públicas se a fila no bota-fora estiver grande, a chuva dificultar a descarga ou quando sobra tempo“Se não estiver apertado, deixo a caçamba por último e levo só no fim da tarde ou de noite para jogar no canteiro central ou em lote vagoSe não tiver como, levo para Neves, no aterro clandestino”, afirma.
O bota-fora clandestino do Veneza fica em um dos pontos comerciais mais movimentados do bairro de Ribeirão das Neves e a três quarteirões de uma companhia da Polícia MilitarApesar disso, ninguém nunca interferiu nos negócios irregularesO acesso pela oficina de fachada leva a um corredor de 20 metros de comprimento, com três carros velhos estacionados e peças sendo lubrificadas em um tanque
Um senhor de meia-idade usando macacão azul de mecânico se apresenta como dono do local, de apelido MarcãoA equipe do EM pergunta quanto custa virar duas caçambas de entulho misturado com produtos contaminados, como latas de tinta, solventes e lâmpadas de mercúrioTodos esses materiais são tóxicos e só podem ser estocados em locais com licença ambiental específica, por representar perigo à saúde humanaMas isso não se mostra problema para MarcãoEle só recomenda jogar os rejeitos em outro ponto, por causa da chuva e da lotação do bota-fora da oficina“Tenho outro lugar, na curva ali da frenteCobramos R$ 50É um outro lugar que eu mesmo arrumeiSe estiar de manhã, de tarde a máquina empurra o entulho”, disse.
O dono dos bota-foras leva a equipe até o outro endereço, a menos de 500 metros do primeiroApresenta um lote com uma casa e um muro parcialmente derrubado, de onde se vê, da rua mesmo, as montanhas de entulho acumuladas no quintalOutro vale nos fundos começa a ser aterrado por todo tipo de entulho e destroços“Tem uns 10 anos que tenho o primeiro loteComo ficou muito cheio, arranjei este aquiE estou esperando a imobiliária liberar um outro lote para comprar e fazer mais um pontoPreciso de mais espaço, porque vem gente de tudo quanto é lugar para cá: de BH, Contagem, Neves, Esmeraldas...”, comenta, sem qualquer constrangimento ou medo de ser descoberto pela fiscalização ambiental.
‘Parece um bota-fora’ Apesar da total falta de discrição tanto do dono quanto das montanhas de entulho acumuladas nos bota-foras do Veneza, a Prefeitura de Ribeirão das Neves diz desconhecer o problemaNem mesmo depois da denúncia da reportagem a fiscalização municipal conseguiu notificar os depósitos clandestinosA administração informou que funcionários do setor de posturas estiveram nos dois endereços e constataram “a existência do que parece ser um bota-fora”Mas isso não foi suficiente para que os poluidores fossem fiscalizados e multados, pois “o local estava fechado”De acordo com a prefeitura, os agentes “retornarão para fazer nova vistoria e, se detectada alguma irregularidade, notificarão o proprietário”.
Monitorar as atividades dos transportadores e receptores de resíduos não se mostra tarefa fácil, já que mesmo quando os fiscais vão aos locais denunciados, muitas vezes não conseguem comprovar as irregularidadesAssim como ocorreu em Neves, de acordo com fiscais das prefeituras da Grande BH procuradas pelo EM, as áreas particulares muitas vezes estão trancadas no momento da fiscalização, os responsáveis não aparecem para atender os agentes e o material perigoso pode já se encontrar enterrado, o que faz necessário uso de máquinas para obter amostras que nem sempre confirmam as irregularidadesDe acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), ações de fiscalização em locais de deposição irregular de entulho e bota-foras foram ampliadas em 8,7% nos quatro primeiros meses deste ano em relação ao mesmo período de 2012, passando de 4.682 para 5.092 procedimentosAs multas, contudo, ainda são raras, na proporção de uma a cada cinco diasE diminuíram de 51 para 23 (queda de 45%) no período.
No caso do ponto de transbordo de caçambas em que o Estado de Minas flagrou o descarte irregular de material tóxico e de descarte controlado, no Bairro Calafate, entre a linha do metrô e a Avenida Juscelino Kubitschek, a PBH informa que o local é alvo de fiscalização, por exercer a atividade em área acima da previsto pelo alvará, podendo o empreendimento “ser multado e interditado”Segundo o analista ambiental da empresa, Marcílio Angelo Alves Martins, esse comportamento é irregular e não é a praxe no empreendimento“Ocorre de virem caçambas com produtos perigosos misturados, mas nossa política é devolver aos geradores ou cobrar pela destinação correta”, disseSobre a deposição prolongada de sucata e de produtos que podem contaminar o solo, o analista informou que os montes aguardam apenas o acúmulo suficiente para serem transportados para locais adequados.
Um dos caminhões que deixou o transbordo na última quarta-feira continha visivelmente entulho contaminado, e foi seguido pela equipe do EMO veículo foi barrado no aterro municipal da BR-040, no Bairro Califórnia, na Região Noroeste, que não aceita a misturaO motorista, então, dirigiu até o vizinho Bairro Filadélfia, onde funciona um bota-fora particularNo local, apenas entulho de construção civil, como tijolos, areia e terra, poderiam ser aterrados, mas por todo o espaço que foi compactado pelas máquinas despontam do solo restos de muitos pneus, latas de tintas e recipientes de produtos químicos usados em reformas e construções
O encarregado do empreendimento, que se identificou apenas como Alex, confirmou não ter licença para receber e aterrar resíduos contaminadosDisse, ainda, que as latas e recipientes encontrados pela reportagem, mesmo os parcialmente enterrados, seriam ainda recolhidos e reciclados por catadores que trabalham no localA Secretaria Municipal Adjunta de Regulação Urbana informou que “não há alvará de localização e funcionamento para o endereço”“A Gerência de Fiscalização da Regional Noroeste informa que há ação fiscal em andamento no local, devido ao exercício de atividade sem alvará e queima de resíduos a céu abertoO infrator pode sofrer penalidade de multa e interdição”, atestou a secretaria.
VETOR SUL
Depois de denúncia feita pelo Estado de Minas em 20 de agosto dando conta de mais de 25 bota-foras ilegais em outro trecho da BR-040, na saída Sul de BH, no sentido Rio de Janeiro, a Prefeitura de BH providenciou um levantamento sobre a situaçãoUma reunião foi convocada na semana passada para traçar estratégias de combate a essa situação, em conjunto com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, prefeituras e secretários de Meio Ambiente de Nova Lima e Brumadinho, além do Departamento de Estradas de Rodagem de Minas, Copasa e Polícia Rodoviária Federal, entre outrosFoi acertado que os municípios forneceriam recursos e pessoal para auxiliar o Dnit nas fiscalizaçõesA PBH tenta agora alterar a lei e incluir punições não apenas para quem produz resíduos e os descarta de forma inadequada, mas também aos transportadores.
A estrada que virou depósito de rejeitos
A atitude dos motoristas de caminhões que atiram resíduos ao longo de vias públicas, seja pela ânsia de lucro ou pela pressa, transformaram o trecho da rodovia BR-040 entre Belo Horizonte e Ribeirão das Neves, no sentido Norte, saída para Brasília, em um gigantesco e escancarado bota-foraEm 28 quilômetros da via, a reportagem do EM contou 59 pontos de descarte clandestino em áreas de domínio do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes às margens da rodovia, nos canteiros centrais e espaços de manobra para retornosÉ como se quem trafega por esse trecho passasse por um monte de resíduos a cada 474,5 metrosA composição dessas pilhas é a mesma das encontradas nas caçambas transportadas em BH: restos de lajes, tijolos, ferragens, pedras, latas de tinta, recipientes de solventes, lâmpadas e até sucata contendo óleo lubrificante, como peças automotivas
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Locação em Geral do Estado de Minas Gerais, Geraldo Anatólio, reconhece que motoristas e auxiliares depositam o conteúdo das caçambas em locais impróprios, mas diz que isso ocorre por falta de alternativa“O preço do despejo regular é muito alto, há poucos locais para a deposição e as distâncias são muito longas”, afirmaDe acordo com o sindicalista, uma proposta deve ser negociada para instituir a reciclagem de material coletado em mais usinas municipaisAtualmente, há três em funcionamento e outras duas em estudo em Belo Horizonte“A realidade hoje é essaA população precisa descartar os resíduos, o setor gera emprego e renda, mas precisamos de apoio municipal, por questões ambientais e econômicas.”
De acordo com o professor do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFMG Rafael Tobias, os descartes contaminados são graves, sobretudo por ameaçar a saúde humana, com efeitos diretos ou cumulativos sobre o organismo“Esses resíduos se dissolvem na água das chuvas, na forma de um chorume que contamina mananciaisAs tintas, por exemplo, contêm metais pesados, o que afeta o sistema neurológicoO mercúrio (presente em lâmpadas, por exemplo) pode afetar o sistema nervoso”, afirmaPara o especialista, o problema do entulho é justamente o grande volume, que causa assoreamento de cursos d’água e soterramento de nascentes“Sem falar que, quando acumulados em estradas e vias, esses resíduos terão de ser removidos pelo poder público e esse custo será dividido com toda a sociedade”, afirma.
O QUE DIZ A LEI
Quem despeja entulho e lixo contaminado às margens de rodovias ou em outros espaços públicos pode ser enquadrado na Lei dos Crimes Ambientais (9.605/1998)O artigo 54 define como crime “causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana ou provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora”A lei estabelece pena de um a quatro anos de prisão e multa entre R$ 5 mil e R$ 50 milhõesSe o descarte ilegal ocorrer em Belo Horizonte, o responsável responde ainda por infração no âmbito do município e está sujeito a multa entre R$ 106 e R$ 4.037.