Natal é época de apadrinhamento, que muitas vezes vira adoçãoÉ o que comprova a história de Mirtes Delfina da Cruz Pereira, de 44 anos, vendedora, que procurou o Centro de Voluntariado de Apoio ao Menor (Cevam) em 2011Ela queria levar alguma criança para passar o feriado do dia 25 com ela e a famíliaSó podem sair do abrigo crianças entre 4 e 7 anos, mas chegou aos seus braços um menino de 9 anosRobert queria conhecer uma família para, pelo menos, passar o NatalO primeiro presente que o garoto pediu foi rever um irmão mais novo, que estava em outro abrigo da capitalLá se foi Mirtes atrás do caçulaEncontrou Diego por meio do Cevam, mas ele já tinha uma família permanente para apadrinhamento.
Robert passou seu primeiro Natal em família, mas não sabia ainda que Ariane e Arielle seriam suas irmãs em um futuro muito próximoNem que Mirtes e o marido Carlos Roberto se tornariam seus paisNo ano seguinte, Diego estava disponível para apadrinhamento e a vendedora não pensou duas vezes: levou os irmãos para casaAs aulas começaram e a família não conseguiu mais ficar longe dos meninos
Nos casos de apadrinhamento, a criança passa fins de semana ou datas especiais com parentes provisórios e depois retornam aos abrigosMas nem sempre ficam lá“Comecei a me manter informada sobre escola, cadernos, fomos vivenciando tudo aquiloNão tinha jeito mais, eles eram nossos”, disse Mirtes.
JUNTOS NOVAMENTE Os dois irmãos estavam na fila de adoçãoRobert estava disponível para receber pais estrangeirosMas Mirtes não conseguia mais pensar na possibilidade de ficar sem seus meninos e colocou seu nome na lista do Juizado da Infância e JuventudeRapidamente, conseguiu a guarda de RobertDiego, aos 6 anos, havia sido adotado por uma família, mas não se adaptou e voltou ao abrigo“Ele perguntou por mim e pelo irmãoFiz as entrevistas novamente e consegui ficar com o caçula”, contou
O Natal deste ano, segundo Mirtes, será completoAgora, ela e Carlos Roberto têm Ariane, de 24, Arielle, de 18, Robert, de 12, e Diego, de 8“Nossas famílias o abraçaram como nossosDeus faz as coisas certas, eles vieram na hora certaNão somos ricos, tudo que temos é do nosso suor, mas o amor por eles é maior que tudo”, disse a mãe.
Uma disputa que mexe com o país
ME., de 4 anos, está com os pais adotivos há dois anos e meioSerá o terceiro Natal com a família que a acolheu e a expectativa é de que não seja o último, mesmo diante de uma batalha judicial enfrentada pelos pais adotivos pela sua guarda definitivaO pai, o empresário Valbio Messias da Silva, de 49, contou que ele e a esposa estão no processo de reinserção, encontrando-se esporadicamente, sempre que há uma definição judicial, com a família biológica da meninaA pequena ainda não foi incluída no processo, que deve durar pelo menos cinco meses.
A menina foi adotada quando tinha 1 ano e 10 mesesEla estava em um abrigo desde os 2 meses, quando o Ministério Público de Minas Gerais solicitou à Justiça a destituição do poder dos pais por denúncias de maus-tratosLá ela ficou, candidata à adoçãoValbio e Liamar Dias estavam na fila e conseguiram a guarda provisóriaMas, ao longo do processo, os pais biológicos, Robson Ribeiro e Maria da Penha Nunes, conseguiram mostrar que estavam reabilitados e que queriam a filha de voltaEm decisão na 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), três desembargadores entenderam que a criança deveria voltar à família biológica e viver ao lado dos seis irmãosComeçava um calvário para todos os envolvidos.
Valbio e Liamar conseguiram liminar para manter a menina com eles, mas dias depois a medida foi derrubadaComeçou então o processo de reiserção, com recursos ainda tramitando na JustiçaNa semana que vem, o Judiciário entra em recesso, e só retorna em 20 de janeiroDurante esse tempo, Mfica com os pais substitutos, que não conseguem pensar na saída dela de casa“Todo Natal com ela é especial, tenho tanta esperança de que tudo vai se resolver que tenho certeza de que este não será o último dela com a gente”, disse Valbio.
O caso ganhou repercussão nacional, mobilizou famílias, especialistas e juristas nas redes sociais e em manifestaçõesAlguns defendem o que está no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), segundo o qual pais biológicos devem ter prioridade sempre na guarda da criançaOutros, revoltados com a decisão, querem que a garota continue com quem já criou laços, vínculos e que ela reconhece como sua família.
Em meio à polêmica, quem adotou recentemente uma criança ficou em pânico, como os casais Flávia e José Guilherme, Ricardo e Rosângela e Mirtes e Carlos RobertoTodos agora estão se sentindo desamparados“Ficamos muito inseguros com esse casoSó ficaremos seguros quando virmos o documento dele com o nosso nome”, disse Flávia, que com o marido tem a guarda provisória de SamuelNo aniversário dele de 1 ano, em 30 de setembro, eles decidiram, por esse motivo, não fazer uma festa muito grandeComemoraram com amor, carinho e ressalvasO medo é de que antes que saia a guarda definitiva a mãe biológica reivindique o filho“Não podemos mais pensar nossa família sem eleÉ nosso filhoFicamos em pânico só de pensar na possibilidade de acontecer com a gente o que houve com a aquela família”, afirmou a mãe.
SUSTO A professora de educação infantil Rosângela Souza, mãe de Eduarda, contou que ela e o marido, Ricardo, tinham a pretensão de adotar mais duas ou três crianças, mas o caso os preocupou e os fez recuar, por enquanto“A vontade ainda não passou, mas estamos muito assustados”, disseEles têm a guarda provisória da menina“Quando esse caso estourou, todos nós fomos tomados por pânicoQuem me dá garantia de que não vai acontecer conosco? Só vamos ter paz de verdade quando chegar o registro dela, com meu nome e o do meu marido”, afirmouSegundo Rosângela, o retorno que ela teve do juizado é de que o processo de adoção pode durar até quatro anos.
A repercussão do caso fez o telefone da casa da vendedora Mirtes Delfina, de 44, tocar sem pararAmigos e parentes queriam saber como estava a situação de Robert e Diego, se já eram filhos definitivos, se havia a possibilidade de acontecer o mesmo com elesA resposta não era tão animadoraEla e o marido têm a guarda provisória dos irmãos, por quem a mãe biológica pode decidir brigar a qualquer momento“Eles sofreram muitos maus-tratos e abandonoSó queremos que sejam felizes agora, que tenham um futuro dignoDamos a eles tudo que demos às nossas filhas”, disse Mirtes
ADOÇÃO Os interessados devem comparecer ao Serviço de Atendimento ao Cidadão do Juizado da Infância e da Juventude, na Avenida Olegário Maciel, 600, sala 106, Centro de Belo Horizonte, de segunda a sexta-feira, das 8h às 17hLá, receberão formulário e a lista de documentos necessáriosTambém será agendada uma participação no curso de preparação para adoçãoContato: (31) 3207-8100.
Apadrinhamento
O Centro de Voluntariado de Apoio ao Menor (Cevam) fica na Rua dos Goitacazes, 71, Belo HorizonteContato: (31) 3224-1022 ou www.cevambrasil.com.br.
NA FILA DE ADOÇÃO
44%
Das crianças pleiteadas em
2012 tinham até 1 ano
35%
Das famílias optam por crianças de cor branca ou parda33% não têm preferência
2.865
Jovens entre 13 e 17 anos estão disponíveis
para adoção no Brasil
308
Crianças entre 0 e 4 anos estão no
Cadastro Nacional de Adoção
Diante de uma criança em situação degradante ou de maus-tratos, o Juizado da Infância e da Juventude procura, antes de optar por adoção, tios, avós e parentes próximos que tenham interesse em ficar com elaNão havendo essa possibilidade, o menor vai para um abrigo e seu nome e características são incluídos em uma listaOs candidatos a adotar manifestam o interesse, passam por palestras, cursos e análises para que a Justiça identifique se realmente estão aptos a ser paisSomente quando a fila anda são chamados a conhecer a criança em um dos abrigos cadastrados.
O processo é longo, detalhado, e, na avaliação do presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), Rodrigo da Cunha Pereira, precisa evoluir“A lei de adoção é preconceituosa”, disseEle se refere à prioridade legal dada à família biológica, enquanto, segundo ele explica, a psicanálise já comprovou que a relação entre pais e filhos pode ser construída, independentemente de laços sanguíneosEm março, segundo Rodrigo, o IBDFam foi convidado pelo Ministério da Justiça para ajudar na implantação de políticas de adoção no paísA intenção era acelerar o processo e diminuir a fila, aumentando o encontro entre crianças em abrigos e pais interessados.
A primeira sugestão foi modificar o artigo que estabelece o privilégio da família biológica sobre a família adotivaSegundo ele, o caminho até a mudança é muito lento, por isso o IBDFam começa a se mobilizar para criar um Estatuto da Adoção“Muitas adoções, para que aconteçam, dependem de desemperrar a máquina judiciáriaÉ preciso ter uma certa formalidade, mas há hoje um excessoVejo que estão fazendo mais mal do que bemÉ preciso proteger a essência, não a formalidade”, defendeuPara ele, o caso da menina de 4 anos que pode voltar para os pais biológicos, mesmo estando há quase três anos com os adotivos, ameaçou todos os processos em vigor no país“Gerou uma insegurança em todos os pais que estão com guarda provisória.”