Jornal Estado de Minas

PM para de prender flanelinhas sem cadastro na área central por causa de decisão judicial

Justiça descartou contravenção quando há falta de registro. Detenções podem ocorrer em outros casos, como extorsão, mas polícia admite ser difícil enquadrar flanelinhas nesse crime

Tiago de Holanda

Flanelinha sem colete e crachá da prefeitura de BH aborda motorista na rua goitacazes: stf considerou que falta de registro é conduta "minimamente ofensiva" - Foto: Túlio Santos/EM/D.A PRESS


A legislação determina que, para exercer a atividade de guardador ou lavador de carro, é preciso ter autorização do poder públicoQuem não cumprir a exigência pode ser punido com multa ou prisão de 15 dias a três meses, segundo o artigo 47 da Lei de Contravenções PenaisApesar disso, a Polícia Militar parou de prender flanelinhas por exercício ilegal da profissão na área dentro dos limites da Avenida do Contorno, em Belo HorizonteO motivo é que a Justiça mineira, repetindo posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), passou a considerar que a infração não deve sofrer sanções penais, apenas administrativasProfissionais regularizados acreditam que as multas aplicadas pela prefeitura são insuficientes para extinguir os ilegais

O caso que chegou ao STF começou com uma denúncia contra três flanelinhas encaminhada pelo Ministério Público mineiro ao Juizado Especial Criminal de BHSegundo a promotoria, os homens exerciam as atividades de “lavadores e tomadores de conta de veículos” sem o devido cadastro realizado pela prefeitura, o que caracterizaria contravenção penalApós perder a causa em primeira instância, o MP conseguiu vencer em segunda instância, mas a Defensoria Pública da União recorreu ao Supremo para suspender o andamento da ação penal, pedido atendido em março do ano passado pelo relator, ministro Ricardo LewandowskiEle determinou que fosse restabelecida a sentença que rejeitou a denúncia.


Na avaliação de Lewandowski, embora as atividades de guardador e lavador sejam regulamentadas pela Lei Federal 6.242, de 1975, o fato de os denunciados não terem autorização do poder público “não revela grau de reprovabilidade tão elevado” a ponto de serem punidos na esfera penalSegundo o ministro, a falta do registro exigido é uma conduta “minimamente ofensiva”, sem “resultado lesivo”, e pode ser “facilmente resolvida na esfera administrativa”, bastando que os flanelinhas sejam orientados a providenciar a habilitaçãoNa análise do relator, não é necessária, “nem um pouco razoável”, a “movimentação de toda a máquina judiciária para a repreensão de tal conduta”.


O coordenador dos Juizados Especiais da Comarca de BH, Vicente de Oliveira e Silva, afirma que o julgamento do STF deverá ser replicado em nível estadual sempre que um flanelinha for denunciado por exercício ilegal da profissão

“Normalmente, no direito brasileiro, a palavra final é do STFSe ele entendeu que a conduta do flanelinha não caracteriza essa contravenção penal, os juízes vão acompanhar essa decisãoJuridicamente, a questão está resolvida”, dizCaso denúncia semelhante seja encaminhada pelo MP à Justiça, “o próprio flanelinha, sem estar representado por defensor público, pode impetrar um habeas corpus, que vai ser deferido diante da jurisprudência criada pelo STF”, avalia.


Diante do posicionamento da Justiça, o trabalho de prender um flanelinha por exercício ilegal da profissão se tornou inútil, como reconhece a comandante do Comando de Policiamento da Capital (CPC), coronel Cláudia Romualdo“Se a Justiça já decretou que essa contravenção não se aplica ao flanelinha, vamos ter que verificar se na ação dele há algum tipo de crimeResta prendê-lo se fizer ameaça ao proprietário do veículo, se estiver tentando extorqui-lo”, analisaPara poupar esforço, a PM deixou de efetuar esse tipo de prisão, informa o tenente-coronel Vítor Araújo, subcomandante do 1º batalhão, responsável pela área dentro da Avenida do Contorno“Não tem sentido fazer essa operação por iniciativa da PMÉ um trabalho vão, toma o tempo de um policial que podia estar na rua fazendo patrulhamento”, ressalta.

Medo de vingança Os flanelinhas são presos na área central somente se já tiverem um mandado de prisão expedido contra eles, se tentarem extorquir algum motorista ou praticarem outro crimeO problema é que, ao ligar para a polícia, quase nenhuma vítima aceita se identificar

“Temos que conduzir à delegacia a vítima e o agente (criminoso)O delegado precisa ouvir as partes e arbitrar a ação do infratorSe não for assim, não podemos fazer nada”, explica Araújo“Muitas vítimas ligam para a PM, mas não se dispõem a esperar a polícia chegar ao localMuitas vezes frequentam aquele lugar, têm medo de voltar lá e sofrer alguma vingança, ter o carro danificado, o pneu furadoAcabam ficando reféns do flanelinha, que aproveita para pedir dinheiro antecipado”, acrescenta.


Quando a vítima não quer se identificar, resta à PM conversar com o criminoso“A polícia faz o cadastro do flanelinha, anota seus dados, faz um boletim de ocorrência simplificado, mas sem a vítima não há como conduzi-lo à delegaciaA gente fala para o flanelinha que ele não pode cobrar antes, que o motorista só paga se quiserGeralmente isso tem surtido efeito”, afirma o subcomandante do 1º batalhãoEle afirma que a decisão do STF dificultou a ação dos militares: “Sem dúvida, foi um dificultador, já que acabou legalizando a atividade, indiretamenteAs ações junto com os fiscais da prefeitura ficaram comprometidas”.


Apesar da mudança de postura da PM, o superintendente de Investigações e Polícia Judiciária de Minas, Jeferson Botelho, afirma que as prisões de flanelinhas por exercício ilegal da profissão devem continuar“Uma norma penal é revogada somente por uma lei posterior, o que não ocorreu com a Lei de Contravenções PenaisA decisão do Supremo não tem poder de revogar a leiA contravenção permanece intacta, e as pessoas que estão praticando esse tipo de conduta poderão receber a reprimenda da polícia”, afirmaSe os militares deixarem de prender guardadores e lavadores de carro não cadastrados na prefeitura, eles cometem o crime de prevaricação, na avaliação de Botelho“A polícia não pode descumprir uma lei”, ressalta.


Multa não inibe irregulares, diz sindicato

A Regional Centro-Sul tem 919 lavadores de carro e 245 guardadores cadastrados, autorizados a exercer as atividadesOs flanelinhas não habilitados podem ser multados pela prefeitura em R$ 1.514,66, se atuarem dentro dos limites da Avenida do Contorno, e em R$ 631,10, se estiverem fora desse perímetroJá a Superintendência Regional do Trabalho concedeu 877 registros para as duas profissões desde 2000Na avaliação do presidente do sindicato que representa esses profissionais, Martim dos Santos, as penalidades aplicadas pelo município não são suficientes para acabar com os irregulares.

“De uns oito meses para cá aumentou o número de flanelinhas, sobretudo no Centro e em bairros vizinhosA fiscalização da prefeitura é insuficiente”, critica SantosOs irregulares não se intimidam ao serem multados, segundo o sindicalista“Eles não têm compromissoNão vão pagar nunca”, afirmaEle avalia como “retrocesso” o fato de a Justiça ter julgado que flanelinhas não devem responder pela contravenção de exercício ilegal da profissão“Com a repressão policial e a possibilidade de ser preso, o flanelinha ficava mais atento”, constataProcurada, a Secretaria Municipal de Regulação Urbana não se manifestou sobre o assunto.

Já Guilherme Orlando Anchieta Melo, professor de direito penal da Fumec, avalia como “perfeita” a decisão do STF e critica o Ministério Público por denunciar flanelinhas não regularizados“Por não se registrarem como deveriam, as pessoas que tomam conta de carros merecem uma sanção penal? Elas não merecem ter uma ficha suja que vai dificultar ainda mais a obtenção de um emprego formal”, opinaEle ressalta que é a prática de extorsão que deve ser punida como crime.
A funcionária pública Vilma Oliveira, de 58 anos, conta que flanelinhas tentaram extorqui-la mais de uma vez“Uma noite, um rapaz pediu R$ 15 antecipadoQuando falei que não pagaria, veio a ameaça: ‘O carro vai ser estragado, vão arranhá-lo’Não paguei, mas fiquei com medo”, relataEla percebe que a postura dos guardadores regularizados é diferente: “Quando eles têm o colete (da prefeitura) dá uma confiabilidade”.