Uma cidade vertical com cinco mil habitantes, acomodados em duas torres com 1.086 apartamentos de 13 tipos.
Os corredores parecem não ter fim. Maiores que muitas ruas de pequenas cidades do mundo, sugerem imensa a vizinhança. Contudo, na grande maioria, são traçados de discrição e reserva. Ali, fora os encontros da turma do Chá dos Amigos – pequeno projeto de convivência entre condôminos – pouco se sabe sobre a vida dos outros. Alguns romances, porém, perpassam portas e janelas.
A fresta da porta é convite aplateia mais curiosa. A performance é de quem conhece bem a música e o que a poesia quer dizer. No último acorde, o silêncio que precede as palmas. Aplaudido, o artista vem ao corredor para atender o público estranho, de pé. Abordagem delicada… Uma entrevista? “Claro!”, sorri o pianista Rogério Andrade de Macedo, de 56 anos, sem olhar desconfiado ou sabatina.
NIEMEYER Antes, um pouco mais sobre o endereço de tantas histórias, projetado em 1952 por Oscar Niemeyer (1907-2012). São 17 os elevadores que fazem o transporte público da cidade JK. Há uma torre, anexa ao Bloco A, só para o sobe e desce no complexo. No maior aglomerado de moradores, os “carros-lotações” fazem ponto apenas nos andares ímpares, numa plataforma de passageiros entre um andar e outro. O que dá mais velocidade ao tráfego. Por um lado. Por outro, um assombro para os cadeirantes e mais idosos, que não estão livres de ao menos 10 degraus, para baixo ou para cima, para sair e voltar para casa.
Na casa do pianista, um apartamento do tipo dois quartos, muitas surpresas. Uma delas é que o músico, na verdade, é um engenheiro que “chutou o balde” dos cálculos mais exatos para “ser feliz”.
As paredes de vidro do JK guardam os segredos de muitos. Em cada unidade, como no filme Edifício Master, do cineasta Eduardo Coutinho, retalho bem particular de recurso e gosto. Nos 21 apartamentos visitados e 33 personagens conhecidos, em comum – locador ou proprietário, jovem ou velho –, a paixão e o orgulho da porta para dentro. “A riqueza deste prédio está nos moradores”, diz Andrea Martins, de 45 anos. Dona de apartamento dos mais aconchegantes, a designer conhece bem a obra de Niemeyer desde o fim da infância, quando a irmã mais velha tornou-se moradora do Bloco B. Ela conta que havia acabado de ler O iluminado, de Stephen King, e que ficava aterrorizada com os corredores intermináveis e escuros do edifício.
O estigma de conjunto decadente, hábitat de traficantes, drogados, travestis e prostitutas, é passado. Pouco a pouco revitalizado, o JK de outros tempos – alvo de preconceito e generalizações – se esvai.
Há rigor na portaria. Em tese, nenhum visitante entra ou sai do prédio sem apresentar documento de identidade. Depois das 22h, a entrada de estranhos ao condomínio só é permitida na companhia do morador anfitrião. Entretanto, não há comunicação entre a portaria e as unidades residenciais. O visitante se identifica, diz o nome do morador e o número do apartamento e sobe. Simples assim. O Bloco A, com entrada pela Rua Timbiras, tem 23 andares. Nele, são 647 unidades. Já o B, com entrada pela Rua Guajajaras, tem 36 pisos, com 439 moradias. Nas áreas comuns, destaque para a limpeza.
“Vivi a fase dark do JK. O prédio, o conjunto todo, era sujo e mal-falado, embora muitas pessoas de bem, de família, morassem aqui”, conta Andrea. Ela relembra a sujeira que vinha das janelas, empobrecendo ainda mais o lugar. “Até hoje tem muita gente que joga lixo pela janela. Um problema, que é a falta de educação”, lamenta. Reservada, de voz bonita e macia, sorridente e acolhedora, a designer resiste em trazer recortes da vida pessoal para a conversa. Fala do prédio, do calor, da poluição e do gosto pela leitura.
Num sopro de confiança, abre brecha no baú de saudades para relembrar a mãe, morta num “acidente estúpido”, num domingo de carnaval, aos 49 anos. “O motorista da lotação fez a curva com a porta aberta e ela caiu. Era pouco mais velha que eu, hoje”, pausa. De jeans e branco, a anfitriã desconversa com elegância. O sol desce lento no horizonte e traz a paisagem para a pauta. “BH não tinha tanta poluição. Os prédios estão brotando numa velocidade incrível e escondendo as montanhas”, diz. Nas mãos, o livro aberto em capítulo interessante: “O luxo de ser invisível”.
Andrea
Os elevadores sobem e descem carregados de histórias. Numa das viagens, o encontro com mãe e filha, moradoras de piso nas alturas. Estão com pressa e compromissos. A conversa fica para o dia seguinte. Andrea Rosa, de 52, e Daniela, de 7, são carisma e boa vontade. Para a mocinha, os porteiros do JK são considerados tios. A professora está no JK há 24 anos. Hoje, vive com o marido – matemático e DJ –, a filha e dois cunhados com necessidades especiais.
Quem vê o sorriso aberto e cheio de vida não imagina as dificuldades de saúde enfrentadas por Andrea nos últimos tempos. Menos ainda é capaz de imaginar a maré de desgosto vivida pela professora entre 1998 e 2000, quando enterrou a mãe e dois irmãos. “Meu pai levantava a mão em prantos e dizia: ‘Por favor, meu Deus! Não leve os meus filhos”, emociona-se. Em 2004, aos 82 anos, Mário de Abreu, o pai, também se foi. Fãs declarados do JK, a família busca agora um apartamento maior no complexo.
Joseline
Joseline Maria de Andrade, de 65, está há 33 anos no JK. São 12 no Bloco B e 21 no Bloco A. Recortes não faltam à lembrança da funcionária pública aposentada. Dos mais terríveis, o vizinho que tanto batia na mulher. “É muito triste isso, não é!?”. Delicada, destaca os bons tempos das flores no jardim que não existe mais no nível da rua. “Hoje, o melhor que temos aqui é a academia da prefeitura, que atende não só os moradores do JK, como também os vizinhos da região. As instrutoras são um espetáculo”, elogia.
Do casamento de 10 anos, sem filhos, ficou a amizade. “Ele me liga três vezes por dia”, sorri. O companheiro, Flávio, voltou para a casa da mãe, de 93, que estava sozinha no Bairro Renascença, na Região Nordeste de Belo Horizonte. “Ele agiu certo. É muito nobre. Tive em casa bisavós, avós e pais criados juntos, em São João del -Rei. Sei da importância da família”, considera. Alegre, Joseline gosta de música e de filmes românticos. São muitos no móvel antigo da sala.
A TV é 3D e o som grava e regrava em pen drive. Descolada e atenta às tecnologias, a aposentada também gosta de viajar. Depois de Nova York, já está com programação acertada para a Terra Santa, em novembro. Entretanto, é das coisas mais simples que Joseline gosta mais. Alegra-se ao relembrar o abraço de moradora de rua que recebeu outro dia. “Foi muito bonito. Ela me pediu um abraço. Eu dei. E ela disse: ‘Deus te ajude’. Por um abraço? Isso é bonito demais”, emociona-se.
Rossana
Depois dos anos de aluguel na Rua Araguari, o JK foi uma conquista e tanto para Rossana D’Amices, de 54. O imóvel comprado em “suaves prestações” na mão da tia foi um marco na vida da funcionária pública. Aposentada, Rossana tem passado as manhãs cuidando da saúde com a prática de hidroginástica, body balance e musculação. Discreta e reservada, a socióloga não conta muitas amizades no Conjunto Kubitschek. “Tenho vizinhos maravilhosos no meu andar, mas não convivo muito aqui. Acho que a discriminação que sofri no condomínio por causa dos meus dois cachorros acabou me afastando daqui”, conta.
Contudo, Rossana revela paixão pelo endereço em que vive: “Minha relação com o JK é de amor. A localização, meus vizinhos, especialmente os mais velhos, o shopping, o Mercado Central… É um sonho. Já recebi propostas indecorosas pelo meu apartamento e não vendo”, garante. Casada há sete anos com Marcos Vinícius, de 57, a socióloga se vê no futuro como no presente: “Aqui, no meu apartamento, curtindo a vida sem pressa”. Sobre a mesinha, ao lado da geladeira colorida, taça de vinho pela saúde do coração.
Está na parte alta de uma das torres, por dedicação de arquiteto morador, tese de responsabilidade inspirada na obra de Niemeyer. Com o título de “Grandes blocos de habitação vertical na América Latina no século 20”, o estudo de Pedro Morais, de 36, propõe reflexão sobre as relações com o espaço e traz a importância de complexos como o JK, pensado nos anos 1940, para os dias atuais – tempo de caos em mobilidade urbana.
A unidade do jovem arquiteto, com 110 metros quadrados, tem detalhes em acabamentos que podem confirmar a lenda de que se trata de apartamento acabado especialmente para o presidente Juscelino. São muitos os charmes vintages, como azulejos, pisos e lavabo especiais. Nos documentos encontrados por Pedro Morais, entre os nomes de ex-proprietários figura o de uma ex-miss do Distrito Federal. Hoje, além do arquiteto e sua mulher, é das gatinhas Mafalda e Branca o aconchego do recanto histórico.
Misaki
No recanto do engenheiro Rogério Andrade, é a mulher agora ao piano. Toca Beatles e Frank Sinatra. Misaki Asai, de 53, veio do Japão pela felicidade ao lado do marido companheiro. Advogada, bailarina e professora de japonês, Misaki é exemplar e exigente também com a música. “Ela me proíbe de tocar os clássicos. Ela diz que Beethoven não criou para ninguém tocar de qualquer jeito”, diverte-se. O sininho oriental na parede faz o vento participar do concerto.
Na sala tomada de instrumentos e pequenos objetos de arte, a bailarina pianista toca My way, acompanhada por Rogério. Misaki veio de Numazu, no Leste de Shizuoka. Nas fotos, espetáculos encenados pela artista. Aos 14 anos, Misaki já comandava pequena orquestra de jovens músicos em sua terra natal. O encontro com Rogério foi no Canadá, há mais de 20 anos. Entre outras tantas afinidades, o amor à arte e a vontade de viver o bem da felicidade com muito pouco.
Mari
No fim do corredor, outra artista que, quando estudante, levou para os trabalhos de sala de aula a inspiração nos traços de Niemeyer. “Tenho o pôr do sol todos os dias na minha janela”, sorri com doçura Mari Guedes, de 31. Desde 2004 no Conjunto Kubitschek, a designer nascida em São Paulo e crescida no Paraná não esconde a felicidade da rotina profissional autônoma de sucesso – tanto que quem quiser contratar os serviços de artes visuais de Mari vai ter que esperar até agosto.
No imóvel, três gatos fazem charme pelos cantos: Alecrim, Serafim e Nina. Fora do JK, uma vez por mês, voluntária, a artista ministra oficinas de “sensibilidade criativa”. Mari, desde que chegou em Minas, optou pelo menos possível para viver bem. “Minha escolha foi a de que tudo que eu precise caiba apenas numa mochila”, alegra-se. A designer já passou por grandes agências e, hoje, garante não abrir mão da qualidade de vida por nenhum dinheiro do mundo.
Sérgio
Das maiores tristezas do administrador Sérgio Hirle, de 56, está a pichação no topo do JK. São 32 anos de condomínio e muito orgulho de toda a arte que há na obra de Niemeyer. Vindo da zona rural de Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri, Sérgio foi parar na Rua Timbiras por falta de recurso e curiosidade. “Vim para experimentar o que seria morar nesta cidade vertical difamada e fiquei encantado porque o JK não era nada do que diziam”, conta.
O administrador diz que travou uma enorme batalha para defender o edifício por todas as rodas que frequentava. Sérgio, voluntário de causas sociais e conselheiro nas áreas de saúde, cultura e segurança pública, faz duras críticas à falta de educação e respeito ao complexo e seu entorno. “Outra grande tristeza são as placas de classificados nas janelas do prédio. É tanto anúncio de vende-se e aluga-se que parece uma página de jornal. É uma agressão”, lamenta.
Canil
A modelo branca como a neve vence apressada um dos corredores do bloco. Some escada abaixo. Os cães latem forte em esquina do andar acima. O morador, que pede para não ser identificado, dá a notícia: “É um canil. O dono dos cães tem outro apartamento e fez aquele ali só de canil. Vá lá e olhe só o cheiro horrível que vem da porta. Já reclamamos. Todo mundo reclama, mas ninguém dá jeito”, lamenta. .