Houve um tempo em que pairava no ar algo além de serpentinas, confetes e som ritmado das marchinhas de carnaval. Nos bailes elegantes, desfile de corsos e brincadeiras de rua, na capital ou interior, homens e mulheres fantasiados empunhavam tubos dourados e esguichavam um spray aromático no pescoço de quem passasse – de preferência, alguém que fosse desejado. Era delicioso, agradável e geladinho, afirma quem viveu as décadas áureas dos lança-perfumes fabricados por empresas como Rhodia, que gravou o nome na folia com o Rodouro; Pierrot e outras de prazerosas lembranças.
No fim dos anos 1970, a cantora e compositora Rita Lee eternizou o produto que “também dava barato” – para os mais jovens, é bom traduzir “barato” por efeito de droga – na famosa canção que dizia: “Lança menina, lança todo esse perfume/desbaratina, não dá pra ficar imune/ao teu amor, que tem cheiro de coisa maluca”. Mas, aí, era apenas referência à substância que saiu de cena em 1961, proibida pelo então presidente da República, Jânio Quadros (1917-1992). Alegando a interferência de “forças ocultas” – ou seria praga de algum fã do Rodouro? –, o chefe da nação renunciou naquele mesmo ano, dando início a uma série de reviravoltas no país. Mas aí já é outra história…
É bom voltar no tempo para entender melhor essa trajetória de euforia e alteração dos sentidos, mesmo que momentânea. Foi no reinado de Momo de 1904, portanto há 110 anos, que a novidade entrou na atmosfera dos salões e se incorporou rapidamente à farra em todas as cidades brasileiras.
Maia colheu depoimento de todo tipo de gente, principalmente de quem viveu intensamente a gandaia colorida nas décadas de 1930 a 1950. Um homem que misturava o perfume à bebida para aumentar o efeito de ambos; outro que jurava des pés juntos que, com a proibição, a cocaína entrou de sola na folia; e ainda aquele certo de que o sumiço do Rodouro representou também o dos bons carnavais. Uma foto ilustra bem esse tempo de alegria, em que era proibido proibir: em 1940, o bloco As camponesas búlgaras posa candidamente para o fotógrafo e as moças carregam nas mãos instrumentos musicais, como pandeirinhos com fitas, e tubos de lança-perfume.
ELEMENTO DE CONQUISTA Segundo pesquisadores, o lança-perfume nacional começou a ser fabricado em 1922 pela unidade da empresa francesa Rhodia, em São Bernardo do Campo (SP). Sem qualquer censura, os anúncios ganhavam espaço nas revistas e jornais, como se fossem publicidade de um perfume qualquer. Com o passar do tempo, como ocorreram excessos pela inalação e mistura na bebida, o produto entrou na mira das autoridades, embora tivesse se tornado o símbolo do carnaval.
Devido ao registro de mortes ocasionadas pela droga manufaturada com solventes químicos à base de cloreto de etila, Jânio Quadros decidiu proibir o uso, que deixou saudade. O decorador Ildeu Koscky, morador do Bairro São Bento, na Região Centro-Sul de BH, não é bom de datas, então nem é bom perguntar em que ano ocorreu uma história que ele conta. Formado em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Koscky conta que o lança-perfume vinha numa caixa com três ou quatro unidades.
“O lança-perfume tinha um cheiro agradável, mas o efeito era muito rápido. Sempre fui muito medroso, jamais ultrapassei os limites, pois sabia dos perigos”, diz Ildeu Koscky, que não esquece os efeitos. “A sensação é que a gente estava flutuando. Parecia que estávamos voando, embora sem cair.” Entre uma prise (cheirada) e outra, seguiam os cordões pela cidade. “Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim/Ah, meu bem, não faz assim comigo não…”
O arquiteto Ricardo Lanna também curtiu muitos carnavais e hoje prefere a tranquilidade de sua casa. Ele tem boas recordações do tempo de inocência, em que todo mundo se fantasiava, ia para as ruas de máscara a fim de se esbaldar. Em Jaguaraçu, na Região Leste, onde nasceu, Lanna revela que, na casa do avô, havia caixas de lança-perfume “escondidas”. Em Ouro Preto, para onde se mudou adolescente e cursou o ensino médio, ele conheceu o produto que “dava um barato, uma zoeira na cabeça”. Mas o clima era de muita alegria, nada de violência, só diversão.
O fim do lança-perfume deixou marcas na memória de quem gostava de brincar ouvindo marchinhas, cheirando a substância e dançando nas praças sob uma chuva de confete, “aquele pedacinho colorido de saudade”, conforme diz uma velha canção.
NOVA VERSÃO
Na década de 1970, entrou no mercado brasileiro o lança-perfume da marca Universitário, fabricado na Argentina. Tempos da ditadura, as autoridades de olho e a garotada doida, em todos os sentidos, para provar daquela substância que os pais e avós tanto falavam. Era um vidro transparente, sem o glamour do Rodouro, mas que embalou muitos carnavais daqueles tempos.
LINHA DO TEMPO
1904 –O lança-perfume surge no carnaval do Rio de Janeiro (RJ) e logo é incorporado às festas do Reino de Momo em todo o país, principalmente nas batalhas de confete, corsos e bailes
1922 – É fabricado o primeiro lança-perfume nacional pela empresa francesa Rhodia, em São Bernardo do Campo (SP)
1931 – A demanda é tão grande, que fábrica de lança-perfume Pierrot publica anúncio pedindo desculpas aos clientes por não poder atendê-los
Década de 1940 – O baile de gala do Automóvel Clube começa a animar a noite de sábado em BH e o uso do lança perfume é uma das atrações
1942 – O baile do Minas Tênis Clube faz a sua estreia no reinado de Momo e tem cheiro de lança no ar
1961 – Por decreto do presidente da República, Jânio Quadros, o lança-perfume é proibido no Brasil
Década de 1970 – Em nova versão, num tubo de vidro, o lança- perfume é contrabandeado da Argentina .