No Dia Mundial de Conscientização do Autismo, comemorado nessa quarta-feira, o respeito aos portadores da síndrome foi assunto e luz azul de muitas praças da capital – o azul é a cor da data porque o transtorno atinge mais meninos do que meninas, numa proporção de 1 para 4 mocinhas. Longe dos refletores de espaços públicos da cidade, dois anos depois da Lei Federal nº 12.764, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) reconhece os direitos previstos na legislação. O decreto municipal entende o autista como “pessoa com deficiência”. Embora bem recebida, especialistas, militantes e pais veem a medida como um “engatinhar” do assunto.
Números do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC) apontam que 1 a cada 68 crianças tem autismo. O que faz da síndrome um distúrbio mais comum e em maior quantidade do que a soma dos casos de Aids, câncer e diabetes juntos. São mais de 70 milhões de pessoas no planeta. No Brasil, pouco se sabe, mas estudo de epidemiologia de autismo da América Latina, sob os cuidados do psiquiatra da infância Marcos Tomanik Mercadante (1960-2011), aponta 1 caso de autismo para cada 368 crianças de 7 a 12 anos.
Para os que acompanham e sentem na pele as dificuldades dos portadores da síndrome, leis e decretos já são muitos e de pouco respeito no Brasil. “Já temos muitas leis, mas na prática é outra história. Nossas crianças estão sendo excluídas na escola, não estão tendo acompanhamento especializado e passam de ano sem estar preparadas. Há muita desinformação e falta de qualificação no serviço público”, avalia Michelle Malab, portadora e mãe de portador de autismo.
Michelle, de 38 anos, é mãe de Pedro Miguel, de 10, diagnosticado com autismo desde os 3. A produtora de eventos só soube da própria condição de autista há 4 meses. “Só busquei agora, aos 38 anos, explicação para o meu perfil por causa das críticas que sempre recebi e pela dificuldade de me relacionar. Se você me perguntar quantas amigas eu tenho, vou responder: ‘nenhuma’”, lamenta. Os olhos verdes e profundos dão vida ao jeito intenso e muito particular de Michelle falar sobre convicções.
Ela critica o Decreto 15.519 – que demonstra conhecer bem. “Falta a regulamentação de um plano de inclusão efetiva nas escolas públicas. Falta, de fato, acompanhamento especializado e fiscalizado. As escolas fazem o que querem com o autista”, ressalta. Casada com Fábio Rocha, de 40, ela traça um paralelo entre a felicidade do relacionamento de mais de duas décadas com as necessidades reais do autista. “Deus me deu a oportunidade de ter um companheiro capaz de lidar com as minhas esquisitices. O autista precisa de respeito e compreensão”, considera.
Michelle relembra com riqueza de detalhes os tempos de imersão na adolescência: “Dos 13 aos 16 anos, isolada, passei trancada no quarto, ouvindo Beethoven e escrevendo livros que depois rasguei”. Militante, promotora de encontros e eventos sobre o autismo, Michelle está debruçada sobre dois livros que pretende publicar – um na visão da mãe de Pedro Miguel. O outro no olhar de portadora da Síndrome de Asperger. A autista chama a atenção para a desinformação que favorece enganos: “Ouvi numa palestra, no Rio de Janeiro, que era para a mãe fumar maconha e soprar no ouvido da criança. Levantei-me e fui embora”, conta.
Fábio Rocha, o marido, critica a falta de apoio do poder público. Para o representante comercial, leis e decretos não bastam. Faltam conscientização e respeito, especialmente. “Em BH, estamos desamparados e a pouca ajuda especializada que existe é particular e custa muito caro. Isso pode chegar ao valor médio de R$ 5 mil por mês”, pontua. Fábio se refere às sessões de fonoaudiologia, de atividade física – natação e judô, são as mais comuns –, encontros regulares com psicólogo, psiquiatra e terapias complementares. “Sem falar na escola, que muitas vezes ainda exige um acompanhante pago pela família”, diz.
Roberta Colen Linhares, de 36, mãe de Arthur, de 12, e Isis, de 9, também vê na educação, pública e privada, um grande desafio a ser superado. O filho mais velho é autista e só foi diagnosticado aos 10 anos. “Ele sofreu isolamento e preconceito na escola. Se o que está na lei, no decreto, for mesmo aplicado na prática, quem sabe muitas mães deixem de passar pelo que passamos”, diz. O atendimento médico é outro ponto delicado apontado pela mãe de Arthur. “Da falta de incentivo, de pesquisa, vem a falta de preparo dos profissionais de saúde. Falta um olhar mais sensível, mais humano, voltado para o paciente”, aponta.
AJUDA NOS LIVROS A comerciante e escritora carioca Dalva Tabachi, de 65, que está em Belo Horizonte para o lançamento do livro Mãe, eu tenho direito, reforça que no Brasil as leis ainda são um arremedo do que, de fato, o autista precisa. “Falta investimento, informação e consciência. Temos muitos autistas em nosso redor que não sabem que são autistas. A primeira vez que meu filho ouviu a palavra autista ele tinha 24 anos”, lamenta. Ricardo Tenenbaum, hoje aos 32, é nadador e mora no Rio de Janeiro com os pais. O moço é também a fonte de inspiração de outro livro da mãe: Mãe, me ensina a conversar, de 2006.
Para a especialista Isadora Adjuto Teixeira, de 28, o poder público é pouco atuante, e o impacto da lei de 2012 é recente e de pouco efeito. “Em BH, existem apenas algumas ações isoladas. Na saúde, são poucos os especialistas. Essa falta de assistência é consequência da falta de conhecimento a respeito da síndrome. Não só na rede pública, mas também na particular”, considera a mestranda em psicologia do desenvolvimento humano pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A psicóloga é coautora de Síndrome de Asperger e outros transtornos do espectro do autismo de alto funcionamento: da avaliação ao tratamento, organizado por Walter Camargos Jr.
SAIBA MAIS: da ciência à legislação
A ciência sabe pouco sobre o autismo, descrito pela primeira vez em 1943. Em 1993, a síndrome foi incluída na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde como um Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD) – que afeta a comunicação, a socialização e o comportamento. É também conhecido como Transtorno Invasivo do Desenvolvimento (TID), do inglês pervasive developmental disorder (PDD). Entretanto, neste contexto, a tradução correta de pervasive é abrangente ou global, e não penetrante ou invasivo. Mais recentemente cunhou-se o termo Transtorno do Espectro Autista (TEA) para englobar o autismo, a Síndrome de Asperger e o Transtorno Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificação. Em 2012, a presidente Dilma sancionou a Lei 12.764, que cria a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo. A nova lei vem sendo chamada de “Lei Berenice Piana”, em homenagem a uma mãe que lutou pela legislação. Em BH, no dia 1º, recebeu atenção especial sob o Decreto 15.519.