Jornal Estado de Minas

Mãe de dois cadeirantes e um bebê enfrenta difícil rotina nos ônibus de Belo Horizonte

A dona de casa Maria José impressiona pela coragem. De casa até o hospital onde os filhos recebem tratamentos, ela pega 4 ônibus e vence preconceitos

Junia Oliveira

Maria José chega à AMR e se desdobra para empurrar Caio e Vítor - Foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA Press



No jogo da vida, são muitas as histórias e os desafios. Alguns deles parecem pesados demais e, para quem olha de fora, até impossíveis de lidar. Seus protagonistas são sinônimo de lições. Inspiram e ensinam, como a dona de casa Maria José Almeida Santos Ribeiro, de 30 anos, mãe de Caio Francisco Almeida Menes e Vítor Ribeiro Menes, dois meninos cadeirantes, de 7 e 2 anos e meio, e de Paulo Alexandre, um bebê sem problemas de saúde, de 4 meses. Empurra com habilidade as duas cadeiras de rodas por Belo Horizonte afora, sobe e desde de ônibus, sem jamais perder o sorriso. Serenidade e dignidade ocupam o semblante dessa mulher, representante de um contingente de guerreiros anônimos que, no papel de pais e filhos, travam uma batalha diária pela vida e contra o preconceito. Nessa luta, a vitória vem em forma de amor e de esperança e, andando lado a lado, buscam a cura e dias de mais alento.

Faça chuva ou sol, lá está ela, de terça a sexta-feira, pronta para enfrentar o longo caminho do Bairro Tancredo Neves, em Ribeirão das Neves, na região metropolitana, divisa com BH, até o Bairro Mangabeiras, na sede da Associação Mineira de Reabilitação (AMR). Terça e quinta há atendimento para os dois filhos.
Nas quartas e sextas é um ou outro. Paulo Alexandre, que ainda mama no peito, vai junto e, se ninguém se dispõe a acompanhá-la, empurra as cadeiras e porta o neném no canguru. Em dias de chuva, como quando foi acompanha pelo Estado de Minas, conta com a ajuda da sogra para ficar com a criança.

No tratamento, o pequeno Vítor se esforça para ficar de pé e andar um dia - Foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA Press

Andar com as cadeiras não é fácil, um verdadeiro jogo de equilibrismo e de criatividade. No ônibus, uma vai atachada ao cinto de segurança, na área reservada a cadeirantes, e a outra, amarrada a um banco, com uma faixa de velcro especial. O impossível se torna natural, com direito a várias adaptações. Pendurada nas cadeiras, sacolas e mochila com lanches, marmitas nos dias em que a correria não permite almoçar em casa, roscas fresquinhas para vender, capa de chuva para cobrir os meninos, sombrinha e o que mais for necessário.

Uma campainha é o adereço final. De um lado, botão. De outro, uma sirene vermelha, do tipo bem barulhenta. “Isso é para quando os motoristas quiserem nos deixar para trás depois de todos os passageiros subirem no ônibus. Eu aperto e todo mundo escuta e não o deixa arrancar. Facilita também para andar na rua, pois as pessoas fingem que não veem e, por isso, não abrem passagem. Em dias de chuva é muito útil”, relata.

Caio tem ajuda de psicopedagoga para fazer os deveres da escola - Foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA Press

Esconde as histórias por trás de toda essa destreza. Foi uma sequência de provações desde as vésperas do nascimento de Caio, em 18 de janeiro de 2007.
Ela conta que tinha sete meses de gravidez quando a bolsa estourou e, durante os três dias nos quais tentou atendimento, a equipe do centro de saúde a mandou de volta para casa. Por fim, decidiu ir ao Hospital Odilon Behrens, onde os médicos prepararam uma cesariana de emergência: o bebê tinha os batimentos cardíacos fracos e a mãe estava em estágio de pré-eclampsia. Dias depois, no Centro de Terapia Intensiva (CTI), Caio teve uma parada cardíaca e ficou cinco segundos desacordado. Maria José acredita que a demora no atendimento pode ter levado à paralisia cerebral, que o jogou na cadeira de rodas. “O médico falou que não era nada e foi tomar um café”, relata.

Na segunda gestação, Maria teve a síndrome da transfusão feto-fetal. Um feto recebe mais sangue que o outro, assim um se torna doador e produz pouco líquido amniótico e o outro receptor, com líquido em excesso. O resultado são bebês de tamanho desproporcional, sendo o doador normalmente pequeno e o receptor, grande. Ao detectar a complicação, o médico fez uma microcirurgia para retirar mais de 4 litros de líquido amniótico. Dois dias depois, a bolsa rompeu. Um dos bebês morreu.
Sobreviveu Vítor, prematuro de 6 meses e peso de 750 gramas. O obstetra, de um plano de saúde, fez um parto normal e retirou a criança com a ajuda do fórceps. O menino teve traumatismo craniano. Três meses depois, numa avaliação na AMR, foi diagnosticado que ele também iria para uma cadeira de rodas. “O meu mundo desabou. Eu percebia que algo estava errado, mas quis fechar os olhos e enxergar apenas com o coração, na esperança de os médicos dizerem que estava tudo bem.”

Na volta para casa, conta com ajuda para pôr Caio e Vítor no ônibus - Foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA Press

A CURA DO PAI O terceiro filho, Paulo Alexandre, nasceu em dezembro do ano passado, com 4,1 quilos. Foi concebido como tentativa de curar o pai, o auxiliar de produção Adair Menes, de 35 anos. Durante todo o pré-natal, a ideia era colher o sangue do cordão umbilical, rico em células-tronco, para, no futuro, aproveitar os avanços da medicina para o marido, surdo desde os 11 anos de idade depois de contrair uma meningite, ter a chance de voltar a escutar. Mas o obstetra não deu andamento ao processo e, por falha médica ou falta de orientação adequada, o casal não pode levar o sonho adiante. “Meu marido ficou muito revoltado, mas agora se conformou”, diz.

Em meio a essa decepção, veio a alegria. Paulo é perfeito, grande e esbanja saúde ao longo de seus 4 meses. “Agora é que eu estou entendendo o que é ser mãe. Peguei o Caio nos braços pela primeira vez quando ele tinha 2 meses e o Vítor, quando tinha 3 meses e parecia um bebê que ainda ia nascer”, lembra. “Diferentemente dos outros, o Paulo já rola e dá gargalhadas. Faz sozinho, sem precisar de estímulos. Apesar de toda dificuldade, a vida me surpreende a cada dia.”

Já no coletivo, ela alimenta os filhos depois de um dia de terapias - Foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA Press

A vitória dos pequenos

A vida termina tarde e começa cedo na casa de Maria José. Ela dorme por volta da meia noite e, às 4h30, no máximo, está de pé para fazer as roscas que vende a outras mães e funcionários da AMR e dar conta do resto da casa. Leva Caio para a escola, busca e segue rumo à AMR. Na associação, os meninos têm acompanhamento em diversas áreas. Na fonoaudiologia, Vítor aprendeu a mastigar e a engolir. Agora, trabalha também a comunicação. A fala se aprimora a cada dia. Na fisioterapia, os movimentos para estimulá-lo a ficar de pé são a esperança de que o pequeno guerreiro andará um dia. Em outra sala, com auxílio de uma psicopedagoga, Caio, aluno do 2º ano do ensino fundamental, desenvolve a coordenação motora e mostra com orgulho que já sabe escrever.

Foram esses tratamentos que, há um ano e três meses, o fizeram andar. Entretanto, por causa do corpo ainda frágil e dos ossos deslocados, Maria José prefere não forçá-lo a caminhar e, por isso, o menino continua na cadeira de rodas. Mas deve andar definitivamente depois de uma cirurgia que fará nos próximos meses no quadril, joelhos e tornozelos. A partir daí, a mãe levará os filhos à AMR todos os dias.

Não será simples, mas a expectativa é grande. A vitória do Caio é um desafio à vida e, hoje, ela se orgulha de jamais ter desistido. “Quando ele nasceu, a médica do hospital me perguntou por que eu não desligava os aparelhos, já que ele tinha poucas chances de sobreviver e, se isso ocorresse, seria um vegetal”. “Essa foi só a primeira vez. Estou acostumada com as críticas e a ouvir piadinhas por ter um terceiro filho com dois na cadeira de rodas. Mas acho que nós também temos o direito de sermos felizes.”

No ambiente onde a esperança é a chave-mestra de diversas mães que passam anos na rotina de tratamento dos filhos deficientes, Maria José tem sempre um sorriso sincero estampado no rosto. “Tive suporte psicológico na AMR, mas ainda bate o desespero, principalmente quando motoristas e cobradores me desrespeitam”, relata.

No início do mês, quando o Estado de Minas acompanhou um dia de sua rotina, ela viveu mais um desses episódios corriqueiros, de motoristas arrancarem depois de os outros passageiros entrarem, passarem direto pelo ponto, pedirem para esperar outro ônibus ou, simplesmente, não a deixarem entrar com as duas cadeiras. Sem contar quando se depara com coletivos que não são equipados com elevadores ou com equipamentos estragados – não são raros os cobradores que se recusam a ajudá-la a subir com as cadeiras.

É preciso perseverança, pois quando está com os dois meninos, pega quatro ônibus de casa até a AMR: do bairro ao Centro; depois, a linha 104 até a Avenida Afonso Pena; de lá, o 4103 até o Parque das Mangabeiras e, por fim, outro da mesma linha para descer em frente à AMR – ele só passa na Rua Professor Otávio Coelho de Magalhães quando sai do parque em direção ao Bairro Aparecida.

No dia em que o EM a acompanhou, ela chegou atrasada à AMR. Isso porque um motorista se recusou a parar e o condutor do ônibus seguinte não queria transportá-los. “A cobradora me disse que tomaria multa da BHTrans se levasse as duas cadeiras. Eu lhe respondi que não poderia deixar um dos meninos para trás . E perguntei se ela é mãe ou avó, pedindo que se colocasse no meu lugar. Ela começou a chorar”, conta. Maria lamenta a falta de solidariedade e de compreensão e quase sempre conta com a ajuda de passageiros para ajudá-la a erguer as cadeiras.

Na semana anterior, outro episódio de desespero. Depois de subir Caio, o condutor arrancou, deixando para trás ela e Vítor na calçada. “A mamãe começou a gritar e a correr, batendo no ônibus e gritando: ‘Meu menino, meu menino’. Tive muito medo. Ele não pode fazer isso, mas faz”, relata Caio. Quando o desespero bate, são os filhos que a consolam: “Às vezes, tenho vontade de nem sair de casa. Aí, vem o Caio, não fala nada, só me dá um beijo. Meu humor muda. Sei que se eu não fizer esse esforço todo, lá na frente eles vão me cobrar”.

No final doa dia, Maria José, a leoa que cuida das crias, ainda sorri - Foto: Paulo Filgueiras/EM/DA Press

A esperança que não deixa desistir

Maria José também tem deficiência auditiva, moderada, e usa, há 17 anos, a mesma prótese para ouvir. Nessa época, com a perspectiva de melhorar a fala e cuidar da saúde, se mudou com a família de Capelinha, no Vale do Jequitinhonha, para BH. Medo das dificuldades não tem. Aliás, só não trabalha agora pelos motivos óbvios. Começou cedo, aos 9 anos de idade, como babá. As últimas crianças de quem cuidou eram trigêmeas, trabalho interrompido para outra nobre tarefa: ser mãe. Conta com a ajuda do marido, o companheiro no cuidado com os meninos.

Caio quer fazer da música sua grande descoberta. Aproveita a musicoterapia na AMR para aprender a tocar. A mãe também o inscreveu na Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, onde ele espera ser chamado para aprender violoncelo e violino. Vítor veio ao mundo ser o companheiro do irmão. Tem na palavra “Caio” uma de suas prediletas. Vê o esforço do mais velho e, como mania de caçula, quer imitá-lo também a andar. Maria José segue serena, com uma dignidade de impressionar. E na luta para conseguir comprar roupas para as crianças e manter o estoque de fraldas em dia. Leoa cuidando da cria. Mulher que sabe de seus direitos e luta por eles. Batalhadora nata, com esperança à frente de tudo. (JO)

AMRA Associação Mineira de Reabilitação (AMR) atua desde 1964 no acompanhamento de crianças e adolescentes carentes com deficiência física. É uma organização filantrópica, sem fins lucrativos, que atende atualmente cerca de 500 pacientes, com paralisia cerebral e outras síndromes. Ampara também os familiares, por meio de projetos de inclusão escolar, esportiva e social. A AMR está localizada na Rua Professor Otávio Coelho de Magalhães, 111, no Bairro Mangabeiras.

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