Jornal Estado de Minas

Justiça revela histórias de imigrantes demitidos em BH na Segunda Guerra Mundial

Em Belo Horizonte, há 207 processos abertos entre 1941 e 1945, todos ligados ao conflito em Pearl Harbor

Bertha Maakaroun - enviada especial
A historiadora Maria Aparecida e Ana Maria, no Centro de Memória, mostram os processos trabalhistas movidos por funcionários - Foto: Marcos Michelin/EM/D.A Press

Dia 13 de dezembro de 1941. Seis dias depois do ataque à base norte-americana de Pearl Harbor pela Marinha Imperial Japonesa, o carpinteiro Alvico Nasckio, natural de Fucushima, no Japão, empregado da Companhia Força e Luz de Minas Gerais, foi sumariamente demitido, apesar dos 15 anos de dedicação à empresa. Subsidiária da Electric Bond & Share, a companhia, multinacional de capital norte-americano que controlava as rotas de bondes elétricos de Belo Horizonte, não usou de subterfúgios para, diante de um juiz do Trabalho, justificar a sua motivação: dado o “caráter traiçoeiro, não de um grupo de homens, mas de uma nação inteira (…) ninguém, em sã consciência pode confiar num cidadão daquela nacionalidade, mesmo que aparentemente inofensivo”.

Não à toa, todos os funcionários alemães e italianos igualmente colocados no olho da rua pela Companhia Força e Luz de Minas Gerais foram readmitidos meses depois. Mas não Alvico Nasckio, que foi buscar os seus direitos na Justiça. “Somos sabedores das atividades sub-reptícias que os japoneses estavam e talvez ainda estejam desenvolvendo em nossa própria terra (…) tendo sempre em vista o plano do seu governo, ora desmascarado, de dominar o mundo”, argumentou a companhia. O termo de conciliação foi firmado em 30 de maio de 1942: Alvico Nasckio recebeu 6 contos de réis. Mas a demissão não foi revertida.

Entre 1941 e 1945, 207 processos iniciados nas duas varas da Justiça do Trabalho de Belo Horizonte fazem referência à participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. “Eles tratam de discriminação de funcionários imigrantes dos países do Eixo, de dificuldades para bancar as obrigações trabalhistas porque tiveram as empresas depredadas ou pelo racionamento de matéria prima e pela carestia”, afirma Ana Maria Matta Machado Diniz, coordenadora do Centro de Memória da Justiça do Trabalho de Minas Gerais.
É uma documentação rica, que pode ser garimpada entre os 220 mil processos do período compreendido entre 1941 e 1974 que, neste momento, são organizados e digitalizados. “As peças que compõem o processo registram as formas de vida na cidade, o perfil dos trabalhadores e das empresas e demonstram como acontecimentos socias, políticos e econômicos como a Segunda Guerra Mundial interagem com o dia a dia dos trabalhadores”, avalia a historiadora e pesquisadora Maria Aparecida Carvalhais Cunha.

Foto no Museu da FEB mostra pracinhas brasileiros embarcando para a Itália, há 70 anos - Foto: Beto Magalhães/EM/D.A Press/Reprodução - 12/3/14Não apenas funcionários de países do Eixo foram demitidos por causa da guerra, como revela a ação proposta pelo motorista brasileiro Ari Assis França, em 5 de novembro de 1945, contra o seu patrão, o italiano Guilherme Golt. Irritado por ver o seu empregado lutar contra o exército italiano, Golt mandou embora o motorista que havia sido convocado para servir à Força Expedicionária Brasileira (FEB) em agosto de 1944. Apesar do Decreto-lei 5.689, de 1943, que proibia a dispensa dos empregados em idade militar convocados, quando Ari retornou da campanha, em outubro de 1945, foi agredido física e verbalmente pelo patrão italiano. Inconformado com o tratamento, Ari moveu uma ação trabalhista, considerando o seu patrão um “quinta coluna, tais os desaforos que dirigiu à soberania brasileira”. Simpatizantes fascistas brasileiros eram pejorativamente denominados pela alcunha de ‘quinta coluna’. Como não compareceu ao julgamento, Guilherme Golt foi julgado à revelia em 11 de dezembro de 1945.

Depredação

Depois do afundamento de mais cinco navios brasileiros por submarinos alemães e italianos entre os dias 15 e 17 de agosto – o que precipitou o ingresso do Brasil na Segunda Guerra Mundial ao lado das forças aliadas –, ocorreu, em âmbito nacional, uma série de depredações a estabelecimentos comerciais pertencentes aos estrangeiros que tinham alguma relação com os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Em Belo Horizonte não foi diferente. Prédios, como a Casa di Italia, em estilo art déco, foram destruídos pelos manifestantes. Vários estabelecimentos comerciais – lojas, padarias e bares – foram atacados, e o problema foi parar na Justiça do Trabalho. Foi o que aconteceu com as padarias Savassi e Boschi, comandadas por famílias de origem italiana, e a padaria Pérola, de família alemã.

Os proprietários da Padaria Savassi não demitiram os funcionários, mas estavam sem condições de operar. Eles, então, consultaram o Conselho Regional do Trabalho: “em virtude da depredação total do estabelecimento, ficou completamente parado todo o serviço que se fazia (…) assim sendo, e sem saber qual atitude tomar, porque embora não se tenham despedido os operários, nem eles tenham abandonado o serviço, não lhes cabe ali mais nenhuma função, ficando portanto desempregados, contando-se, entre eles, alguns que são casados e constituem família”. Os empresários foram aconselhados a aguardar as reclamações trabalhistas.
Já as padarias Boschi e Pérola, que, igualmente depredadas, paralisaram as atividades, foram acionadas judicialmente e condenadas a indenizar os empregados.

Também depredada foi a Casa Hermany, que tinha quatro estabelecimentos comerciais em Belo Horizonte, entre os quais um depósito com mercadorias, todos depredados em 19 de agosto de 1942 como “represália” ao afundamento do navio Baependi em 15 de agosto do mesmo ano pelo submarino alemão. Processados por uma das funcionárias, os proprietários argumentaram ter perdido todo o estoque e, em decorrência disso, terem negociado com os empregados que teriam se afastado até que a empresa fosse indenizada. “Todos os empregados solidários concordaram com a solução, com exceção da reclamante”, alegou a defesa da empresa.

Saiba mais: Justiça do Trabalho


O contexto histórico de greves e mobilização dos trabalhadores em consequência do processo de industrialização do Brasil no início do século 20, fez com que o governo de Getúlio Vargas elaborasse um sistema de leis e instituições para pacificar e manter sob o controle do Estado as tensões entre patrões e empregados. Inserida na Constituição Federal de 1934, a Justiça do Trabalho só foi instalada efetivamente em 1º de maio de 1941. Dois anos depois, esse processo culminou com a edição da Consolidação das Leis do Trabalho. A presidente do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, Maria Laura Franco Lima de Faria, lembra que a partir de 1988 o direito do trabalho foi incorporado à Constituição Federal. “Hoje a legislação trabalhista enfrenta novos gargalos. Os contratos de terceirização e as ações de danos morais, são aquelas que mais apresentam crescimento das demandas”, assinala Maria Laura.

Linha do tempo

1941 – Em 7 de dezembro, a Marinha Imperial Japonesa atacou a base de Pearl Harbor, na ilha de Oahu, no Havaí, o que marcou a entrada dos EUA na Segunda Guerra
1942 – Em janeiro, o Brasil que se mantinha neutro, foi convencido pelos EUA a ceder a ilha de Fernando de Noronha e a costa nordestina para o recebimento de suas bases
1942 – Em 15 de agosto, o navio de carga e passageiros Baependi foi afundado pelo submarino alemão U-507, no litoral de Sergipe. Foi uma das maiores tragédias do país na guerra, com 270 mortos
1944 – Em 2 de julho, começaram o envio das tropas da Força Expedicionária Brasileira (FEB), com destino a Nápoles
1945 – Até junho, a FEB aprisionou mais de 20 mil soldados inimigos, 80 canhões, 1.500 viaturas e 4 mil cavalos. As primeiras vitórias ocorreram com as tomadas de Massarosa, Camaiore e Monte Prano
1945 – Em 6 de junho, o Ministério da Guerra do Brasil ordenou que as unidades da FEB, ainda na Itália, se subordinassem ao comandante da 1ª Região Militar, que significava o regresso ao país.