No momento em que Belo Horizonte discute o seu futuro na 4ª Conferência Municipal de Política Urbana, que prevê mudanças profundas na ocupação dos espaços na capital, o Bairro da Lagoinha pede paz para voltar a ser feliz. E para ser feliz, Lagoinha, o bairro, precisa também exorcitzar seus fantasmas, os estigmas, as maldições. Lagoinha, o bairro, para ser feliz, precisa ainda que alguém acredite em seu potencial, nas vocações movimenadas e rentáveis das primeiras décadas do século passado. Vocações engolidas nos anos seguintes por uma ilusão de progresso. Um projeto desenhado em meados dos anos 1990 poderia ter dado ao Lagoinha impulso suficiente para que caminhasse com as próprias pernas rumo ao resgate de sua intensidade social e econômica. Uma barreira política não o permitiu. Agora, este projeto está sendo retomado para levar o bairro da Região Noroeste de Belo Horizonte ao nível de dignidade que merece, não pela fama, mas pela sua importância na história da capital mineira.
Antes de falar dessa perspectiva otimista é importante voltar no tempo para falar da origem do bairro, da sua efervescência, da localização e dos traumas que o levaram a pagar um preço alto: o isolamento, o esquecimento. E de um sentimentalismo acerca de uma boemia que não lhe deixou herança.
Uma Babel se ergueu além do Ribeirão Arrudas e da estrada de ferro. Uma Babel que, por necessidade de sobrevivência, conseguiu com o tempo se entrelaçar, ao contrário da torre bíblica que ruiu por falta de comunicação. Enquanto o Lagoinha se entendia, ocupava-se o perímetro da Contorno. O Bairro Funcionários, o maior, recebia os servidores públicos que iam movimentar a máquina do estado. Esses moradores precisavam de serviços: alfaiataria, sapataria, marcenaria, barbearia, lavanderia. Onde buscá-los? No Lagoinha, que, por necessidade própria, teve que se desdobrar em artes e ofícios. Nas primeiras décadas, até a capital contida na Contorno se organizar, o bairro além da linha do trem e do Arrudas se desenvolveu, se transformou numa comunidade de vida social e econômica intensa.
RELIGIÃO E PAGANISMO Clubes, igreja, futebol, música (foi um dos berços do samba da capital), festas religiosas e pagãs. Depois chegaram os cinemas e mais e mais ofícios. Nos domingos dos anos dourados do bairro, enquanto os rapazes se dirigiam ao campo do Pitangui para os clássicos entre Fluminense e Terrestre, as moças se preparavam para os bailes na sede do Fluminense ou para as quermesses promovidas pelo Santuário de Nossa Senhora da Conceição.
Pode-se falar muito do Bairro Lagoinha espremido entre as avenidas Antônio Carlos e Pedro II e separado do Cento pela linha de trem e o ribeirão, no qual os primeiros moradores podiam pescar e até nadar. Mas a conversa ficaria longa e até desnecessária, porque a história do bairro já foi contada em prosa e verso e há na internet um sem número de versões para a sua criação. O que dói nos antigos moradores do Lagoinha é o fato de o bairro não ter ficado marcado pelo seu passado de contribuição ao avanço da cidade, mas sim pela fama boêmia da devassa e extinta Praça Vaz de Melo.
O portal da boemia
A Praça Vaz de Melo era, na verdade, um quarteirão entre a ferrovia e a Avenida Antônio Carlos. Era o portal não só do Bairro Lagoinha, como da Região Norte e de parte da Noroeste. Cruzavam aquele portal puros e pecadores. Os puros seguiam caminho. Os outros ficavam, atraídos pela proposta de noites alegres em cabarés, entre copos e garrafas, prostitutas, artistas decadentes e novatos em busca do estrelato, intelectuais , prostitutas e malandros que viviam da esperteza e da exploração de mulheres.
Eram tempos de paz e sem violência. A população fixa ou flutuante da Praça Vaz de Melo não incomodava os moradores.
Os malandros eram indivíduos supostamente elegantes, de paletó geralmente de linho branco, calças de casemira, sapatos de duas cores e camisa aberta no peito, por onde desciam grossas correntes de ouro. Manejavam navalhas como extrema habilidade. Não para roubar ou agredir alguém, mas para defender território ou as prostitutas que exploravam. Não havia outro lugar para eles na cidade e quando a Feira de Amostras, no início da Avenida Afonso Pena, e seu anexo, o ginásio do Paissandu, foram demolidos para dar lugar à atual rodoviária, a malandragem ficou de orelha em pé. Depois, implodiram o Mercado Mauá e o Cine São Geraldo, na Contorno. Haveria mudanças profundas na região.
“Pelo amor de Deus, chega dessa história de boemia. Esqueceram que aqui, no Lagoinha, mora gente que trabalha, que estuda”, diz Sônia. Ela quer dizer que o bairro, sufocado por um tráfego infernal – pelo menos 120 mil veículos passam pelo complexo por dia – precisa recuperar a auto-estima, a economia, a vida social. E atrás dos viadutos, vem a degradação. As áreas sob eles viram depósitos de lixo e moradia para sem-teto, viciados em drogas e bandidos. “No meu tempo de menina, havia vida aqui”, diz a dona de casa, ex-professora e mãe de três filhos. Hoje, como em quase todos os bairros da cidade, no Lagoinha as portas são trancadas mal escurece.
Recuperação que não veio
Depois da demolição do portal, o Lagoinha caiu no esquecimento. Do efervescente comércio, da oferta de serviços, pouco restou. Da vida social, nem se fala. Ficou na lembrança apenas a Praça Vaz de Melo com sua fama boêmia. “Adeus Lagoinha, adeus; estão levando o que resta de mim; dizem que é a força do progresso; um minuto eu peço, para ver seu fim.” Os versos do compositor, cantor e poeta Gervásio Horta são profundamente marcantes, dizem tudo. Já não se recorre tanto a aquele bairro tão importante na época em que a cidade engatinhava.
No início dos anos 1990, o bairro gritou pedindo atenção. O apelo chegou aos ouvidos de intelectuais, artistas, acadêmicos e até de políticos. Surtiu efeito. Em 1994, a prefeitura acenou com um plano de revitalização. O projeto nasceu das mãos de Rodrigo Andrade (urbanista), Maria de Lourdes Dolabela (socióloga), Iara Landre (arquiteta) e Leonardo Castriota (arquiteto) e previa a requalificação total da região.
O novo Bairro Lagoinha seria presente aos moradores no centenário de BH. Em 1997, ano em que a cidade completou 100 anos, o trabalho estava em andamento e o médico Célio de Castro assumiu a PBH. Meses após a posse, o Diário da Tarde, jornal que era editado pelos Diários Associados, saiu com esta manchete: “Projeto Lagoinha não pôde ser executado por falta de parceria”. O município queria mesmo apoio da iniciativa privada ou foi questão política? Não se sabe. Doutor Célio não está mais aí para responder.
VOCAÇÃO DO BAIRRO Agora, 20 anos depois, Leonardo Castriota se dedica a outro projeto, fisicamente menos audacioso, mas substancioso no propósito. “Fizemos um inventário das vocações do Lagoinha, o que ainda existe de ofícios, como alfaitaria, artesanato em gesso, marcenaria, serralheria, sapataria, entre outros. Há até registro de um consertador de acordeon.” O trabalho de resgate desses ofícios será desenvolvido em oficinas no mercadinho municipal, onde hoje funciona uma padaria-escola.
O aposentado Nelson Gomes, de 83 anos, nasceu no Lagoinha. Foi condutor de bonde e modelista de calçados. “Havia oficinas de calçados aqui e uma fábrica na Rua Marambaia, no Bairro Pedro II. Fiz sapatos para as grandes lojas da cidade. Hoje, só há uma pequena renovadora de calçados, na Rua Além Paraíba.” Ele acredita que se o novo projeto der certo, o bairro pode sim se reerguer sozinho. “Lagoinha tem futuro, toda a vida teve. E é importante também que recuperem a Rua Itapacerica. As casas antigas estão caindo.” Nelson, pai de sete filhos e avô de 14 netos, só teme a violência. “É o lado ruim.” .