Portugal ainda não tinha controle sobre a região das minas, o rei se preocupava apenas com a cobrança do “quinto” – taxa de até 20% sobre a extração de ouro – e sertões adentro imperavam desmandos, conflitos e distanciamento das leis e da ordem. Assim era Minas Gerais no início do século 18. Mas em 1711, a história começou a mudar com a criação das primeiras vilas e, três anos depois, chegavam mais avanços, com a instituição das comarcas pioneiras do Rio das Velhas, cuja sede ficava na Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de Sabará, atual Sabará; Vila Rica, hoje Ouro Preto; e Rio das Mortes, com sede na Vila de São João del-Rei.
Para celebrar os 300 anos desse marco da primeira divisão administrativa e jurídica do estado, haverá solenidade em São João del-Rei, no Campo das Vertentes, em data a ser marcada neste semestre. À frente está o juiz da 2ª Vara Cível, Auro Aparecido Maia de Andrade, que programa lançamento de selo comemorativo e de um livro contendo artigos sobre o tema. Para compor a mesa, já foi convidado o presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), desembargador Joaquim Herculano Rodrigues.
Segundo Auro, as primeiras comarcas puseram a estrutura judiciária mais próxima do povo e significaram uma forma de equilíbrio com a administração do governador-geral, representante do rei de Portugal. “Nas décadas iniciais da colonização, época das capitanias hereditárias, a figura do ouvidor-geral foi a primeira instância jurídica em solo brasileiro. Quase dois séculos depois, nas vilas, havia uma incipiente estrutura judiciária, com a presença dos juízes ordinários, pessoas escolhidas entre os homens de bem, assim como os “camaristas” ou membros da Câmara, que hoje são os vereadores”, explica.
Em 1714, eram recentes os acontecimentos da Guerra dos Emboabas (veja o FIQUE POR DENTRO) e a extração do ouro estava em franca expansão. “Daí, o interesse da coroa em instituir as comarcas. Até porque, como o ouvidor-geral era nomeado pelo rei e detinha várias atribuições administrativas além da judicial, era essa a única forma de rever os atos dos juízes ordinários. O reino português não aprimorava a colônia brasileira sem algo em vista”, explica o juiz de direito. No livro a ser lançado, estarão registrados processos importantes como a Revolta de Carrancas, rebelião escrava na freguesia de Carrancas; retificação do registro civil de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, e de Francisca de Paula de Jesus (1810-1895), a Nhá Chica, mineira beatificada em abril do ano passado.
Esse pedaço precioso da história também foi alvo de estudos da professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Fernanda Borges de Moraes, que defendeu a tese de doutorado A rede urbana das Minas coloniais: na urdidura do tempo e do espaço. “Com as comarcas, começou o processo civilizatório de Minas”, afirma arquiteta residente em Belo Horizonte. “Portugal não tinha interesse pela colônia, mas somente na exploração das riquezas”. Ela conta que, em 1702, Portugal tomou a primeira medida para organizar a exploração do ouro, com a instituição do Regimento para direção e governo da gente que trabalha nas minas que há nestes sertões do Brasil.
Diante do mapa com a delimitação das três regiões de Minas no século 18, Fernanda conta que o território não tinha a configuração que se conhece hoje. “As sedes da comarcas ficavam bem próximas, já que a população se concentrava nos limites entre o Rio das Mortes, Vila Rica e Sabará. Lugares mais distantes, como Minas Novas, no Vale do Jequitinhonha, estavam subjugados à comarca de Jacobina, na Bahia”, diz a professora. A quarta comarca, a do Serro Frio, com sede na Vila do Príncipe, hoje Serro, no Vale do Jequitinhonha, só foi criada em 1720. Dessa forma, o território mineiro ficou dividido, grosso modo, em quatro partes.
PRIMÓRDIOS Para entender melhor o período antes das vilas e das três primeiras comarcas, é preciso voltar no tempo e tomar conhecimento do território ainda pouco explorado da então Capitania de São Paulo e Minas do Ouro. A descoberta do ouro despertou cobiça, atraiu gente de todo canto – “em torno de 30 mil almas”, lembra a professora Fernanda Moraes, citando o historiador Padre Antonil, e gerou praticamente uma terra sem lei nos arraiais mineradores, no século 17 e início do 18. Pesquisadores mostram que era uma verdadeira desordem, pois não havia autoridades e o governo se encontrava sempre distante. Para colocar ordem e normatizar administrativamente esses lugarejos, o então governador da Capitania das Minas de Ouro e São Paulo, Antônio de Albuquerque, criou as primeiras vilas, que, na sequência, passam a funcionar como cabeça de comarca.
A professora destaca que, nas duas primeiras décadas do século 18, a reestruturação dos limites da capitania (1709 e 1720), criação das nove primeiras vilas (1711-1730) e das quatro primeiras comarcas (1714 e 1720) foram a expressão da estrutura político-administrativa e judiciária básica implantada nas Minas Gerais, pontuada pelo estabelecimento de registros, passagens e guardas patrulhas. A sede da capitania instalou-se, estrategicamente, em Vila Rica, região mais central das principais áreas mineradoras.
Guerra dos Emboabas
No início do século 18, os paulistas, descobridores das minas, estavam estabelecidos nos arraiais que iam de Caeté a São João del-Rei. Atraídos pelas riquezas, os emboabas, grupo formado por portugueses, baianos e pernambucanos, também chamados de reinóis e forasteiros, chegaram em massa, invadindo a área e revoltando os pioneiros. A disputa pelo ouro e pelo poder – a guerra foi, acima de tudo, uma disputa política em torno dos principais cargos e postos da administração montada na região – levou a conflitos armados e à escolha, em 1707, de um emboaba para governador, o português Manuel Nunes Viana, à revelia da coroa portuguesa.
Ouvidor-geral
A partir de 1548, implantou-se no Brasil o sistema de governos gerais, no qual o poder político e administrativo era também repartido com um representante do rei, o governador-geral. Nos assuntos referentes à Justiça, ele era assessorado pelo ouvidor-geral, magistrado incumbido de aplicar o direito em todo o território da colônia.
Documentos
O Arquivo Técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em São João del-Rei guarda mais de e 50 mil documentos referentes a um período de 277 anos (1715-1986), entre inventários de personagens da Inconfidência Mineira, testamentos, processos criminais, tráfico de escravos, mineração de ouro, comércio, criação de cidades, abertura de ruas e cartas de sesmarias, além de registros eleitorais. O espaço tem grande parte dos registros da Comarca do Rio das Morte que existiu até 8 de abril de 1892, quando, com a reorganização do sistema judiciário, em seguida à Proclamação da República, foi substituída pela de São João del-Rei.
Serviço
Arquivo Técnico do Iphan
Avenida Hermilo Alves, 52, Centro, São João del-Rei
Aberto de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 13h30
Consultas e agendamento de visitas: (32) 3371-7724
LINHA DO TEMPO
Século 17 – Primeiros colonizadores chegam às minas em busca de ouro e pedras preciosas. Até o início do século 18, a região fazia parte da Capitania do Rio de Janeiro
1709 – Neste ano, é criada a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, em decorrência da Guerra dos Emboabas
1711 – Surgem as primeiras vilas do ouro: Mariana, em 8 de abril; Ouro Preto, ex-Vila Rica, em 8 de julho; e Sabará, antiga Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de Sabará, em 17 de julho
1714 – Em 6 de abril, são instituídas as primeiras comarcas na Capitania de São Paulo e Minas do Ouro: Rio das Mortes, Vila Rica e Rio das Velhas
1720 – Instituída a Comarca do Serro Frio, com sede na Vila do Príncipe, atual Serro. Dessa forma, o território mineiro, a grosso modo, fica dividido em quatro partes
1720 –Região de exploração do ouro se torna Capitania de Minas
1820 –Minas se torna província. Ao longo do império, as primeiras comarcas vão sendo desmembradas