Jornal Estado de Minas

Tesouros do Caraça

Santuário religioso, turístico e ambiental comemora 240 anos em Minas

Caraça preserva patrimônio no complexo arquitetônico localizado entre montanhas e florestas

Jorge Macedo - especial para o EM
Gustavo Werneck

Formação rochosa que se assemelha a rosto e dá nome ao santuário impressiona visitantes: no detalhe, o biólogo Gabriel Tonelli em foto que turistas costumam fazer - Foto: Marcos Michelin/EM/D.A Press

Catas Altas e Santa Bárbara – Ao conhecer, em 1881, um dos primeiros colégios do Brasil, dom Pedro II (1825-1891) não conteve a emoção e deixou registrado: “Só a visita ao Caraça paga toda a viagem a Minas”. Saudado em nove idiomas pelos alunos e professores, o imperador poliglota agradeceu os discursos à altura e presenteou a instituição, dirigida pelos padres lazaristas ou vicentinos, com um vitral de cinco metros – Jesus no templo, entre os doutores –, que pode ser contemplado na Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens, pioneira no estilo neogótico no país. Em plena comemoração de 240 anos de história e duas décadas como unidade de conservação ambiental, fato da maior importância numa região desgastada pela extração de minério, o local desperta admiração diante de tesouros artísticos e paisagísticos e atrai cerca de 70 mil visitantes por ano. “O Santuário do Caraça é uma casa viva, centro de peregrinação, cultura e turismo”, diz o padre Lauro Palú, encarregado do setor de animação cultural e pastoral.

A diversidade permeia todos os espaços desse patrimônio incrustado no topo do maciço do Espinhaço, tendo a Serra do Caraça como sentinela, e localizado a 120 quilômetros de Belo Horizonte. No prédio, que foi seminário e colégio até 1968, está a pinacoteca, com quadros, relíquias e alfaias (paramentos) catalogados e guardados com máxima segurança, mas ainda de porta trancada. Segundo padre Lauro, há estudo para que as peças possam ser apreciadas por visitantes brasileiros e estrangeiros. Só em 2013 eles chegaram de 39 países, incluindo Cazaquistão, Malásia e África do Sul.
No período da Copa do Mundo, o Caraça será ótimo destino para quem quiser mergulhar no íntimo das Gerais ou ficar bem longe dos gritos de gol.

Tombado desde 1955 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Caraça fabrica vinhos, tem biblioteca com 25 mil livros, entre eles o Incunábulo, de 1489, e outro com anotações feitas a bico de pena por dom Pedro II, conforme mostra a bibliotecária Vera Lúcia Garcia, mantém as velhas catacumbas e se orgulha da tradicional visita noturna ao adro do lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), sempre pronto para devorar pedaços de frango postos numa bandeja pelos padres vicentinos. A programação comemorativa do aniversário compreende lançamento do livro Serra do Caraça, de Christiano Ottoni , e uma revista, encontro promovido pela Associação dos Ex-alunos Lazaristas e Amigos do Caraça (Aealac), exposição fotográfica sobre a biodiversidade, já em cartaz na biblioteca, e outros eventos no segundo semestre.

- Foto: Marcos Michelin/EM/D.A Press

OLHOS QUE ATRAEM F
undado em 1774 pelo português Carlos Mendonça Távora, chamado de Irmão Lourenço de Nossa Senhora, e hoje pertencente à Província Brasileira da Congregação da Missão, o santuário reserva surpresas e mistérios. Não é à toa que seu apelido é porta do céu. O importante é ter calma para desvendá-lo e sensibilidade para mantê-lo na memória. Na igreja, está a Santa Ceia, pintada por Manuel da Costa Ataíde (1762-1830), “amigo e testamenteiro do Irmão Lourenço”, explica padre Lauro. Para os curiosos, vale a pena, assim que começar a ver a tela, mirar o rosto de Judas e ver que os olhos dele vão acompanhá-lo até o fim do curto trajeto. É a técnica denominada “menina dos olhos”, que seduz à primeira vista e obriga a repetir a dose com bom humor.

Pelo corredor formado entre os bancos da igreja, caminha-se até o altar e se depara com a primeira relíquia de um santo que chegou ao Brasil, mais exatamente em 1797, depois de uma viagem de cinco anos. Deitado numa vitrine, está o corpo de São Pio Mártir, encontrado na catacumba de Santa Ciríaca, em Roma, com os ossos cobertos de cera. Num cálice, um pouco do sangue e areia do túmulo de um soldado romano cristão, morto ao confessar a fé. Como era costume na época em que o corpo foi encontrado, ele recebeu o nome do papa Pio VI (1717-1799), que então governava a Igreja.


Elevando-se um pouco os olhos, vê-se o vitral, tendo na base o desenho da coroa de dom Pedro II e a imagem portuguesa de Nossa Senhora Mãe dos Homens, que chegou em 1784. Sem dúvida, natureza e religiosidade comandam a vida no Caraça. Anualmente, em 7 de setembro, às 17h, a luz solar bate diretamente sobre o sacrário, conta padre Lauro. “A data é fruto do acaso”, diz. Também nos solstícios, época em que o Sol passa pela sua maior declinação boreal ou austral, há espetáculos de beleza: no inverno, a luz incide sobre a imagem de São Francisco, enquanto no verão sobre São Vicente, fundador da congregação dos lazaristas.

Na entrada ou na saída do templo neogótico, projetado pelo padre francês Jules Clavelin, e construído entre 1876 e 1883 em substituição à ermida primitiva, há dois altares barrocos originais. À direita, o dedicado a Nossa Senhora da Piedade, e, à esquerda, o do Sagrado Coração de Jesus, de autoria do entalhador e escultor português Francisco Vieira Servas (1720-1811), dono de um estilo próprio na construção dos retábulos. Na parte de baixo, está o espaço vazio, no qual ficava a relíquia de São Pio Mártir.

CAMÉLIAS BRANCAS Depois da igreja, é hora de conhecer a adega, descendo uma escadaria de pedra, contornando o relógio de sol e se encantando com as camélias brancas do jardim. À frente, segue o administrador do santuário, padre Luís Carlos do Vale.
No subterrâneo, há tonéis de madeira com os vinhos de jabuticaba e uva e uma garrafa com a bebida, mas, nessa época, não existe fabricação. O passo seguinte será a catacumba, sob o claustro, pouco visitada mas caminho precioso para o visitante conhecer o Caraça por inteiro. Padres e diretores, muitos deles europeus, estão ali sepultados. Surpreende o piso, rocha pura. “Estamos exatamente sobre a montanha”, observa padre Lauro.

Sempre citado pelos vicentinos, o Servo de Deus dom Antônio Ferreira Viçoso (1781-1875), ex-bispo de Mariana e diretor do colégio de 1837 a 1842, está enterrado em Mariana, e não na cripta do Caraça. Mas muitas das relíquias de dom Viçoso se encontram na pinacoteca, que mantém o quadro do Irmão Lourenço pintado por Ataíde; óleo sobre tela retratando dom João VI; e Santo Antônio de Pádua, obra do alemão Jorge Grimm, que esteve no Caraça em 1885. É dele também o quadro com o santuário e as montanhas na parede do refeitório.

Riqueza natural

A exposição Caraça é nota 10, com 75 registros da biodiversidade da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), está em cartaz no prédio do museu e biblioteca do Santuário do Caraça, cujo reitor é o padre Wilson Belloni. A mostra reúne flagrantes da fauna e da flora clicados pelo padre Lauro Palú e encanta estudantes que visitam a instituição diariamente. Depois de ver a exposição, nada melhor do que sair a campo – sempre com um guia, se for para mais longe – a fim de conhecer o centro de visitantes, trilhas, cachoeiras, e demais belezas naturais desse patrimônio localizado numa área de transição entre mata atlântica e cerradoe distribuído pelos municípios de Catas Altas e Santa Bárbara – para maior exatidão, o complexo arquitetônico está nos limites de Catas Altas. Padre Lauro, que completa 50 anos sacerdócio em setembro e estudou no Caraça durante seis anos, conta que há 79 espécies de mamíferos, entre eles o lobo-guará, onças preta e parda e anta, 600 tipos de besouros, “200 deles encontrados aqui ou pela primeira vez aqui”, 386 aves, com destaque para o jacu e as águias chilena e cinzenta, 19 beija-flores e 25 falcões e gaviões.

A flora também prima pela exuberância: 210 espécies de orquídeas documentadas, 241 de samambaias e ainda plantas medicinais, com pesquisa feita por equipe da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sempre com dados superlativos, a reserva natural do Caraça tem os dois picos mais altos do Espinhaço, o Pico do Sol, com 2.072 metros e o Inficionado, com 2.068m; a segunda e terceira grutas de quatzolito mais profundas do país, a Centenário, com 484m e a Bocaina, com 404m e três grandes abismos, com 120m, 116m e 94m. Como Caraça significa “cara grande”, é recomendado conferir a formação rochosa que batiza o santuário e fica a 50 minutos de caminhada da igreja.

- Foto: Marcos Michelin/EM/D.A PressLobo-guará

Café da manhã, almoço e jantar saborosos, servidos sobre o fogão a lenha, aumentam o charme do Caraça, que tem missas diariamente na igreja neogótica e chá com pipoca após a celebração. Mas um dos momentos mais esperados é a “hora do lobo”, no início da noite, quando o guará surge da escuridão para receber pedaços de frango e bananas oferecidos na bandeja pelos padres. “Ele vem há 32 anos e não tem falhado. Às vezes chega mais cedo, às 3h da madrugada…“, diz o padre Paulo Lauro.

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PASSEIO PELA HISTÓRIA

>> Vitrais da igreja
– A peça central foi presente do imperador dom Pedro II, durante visita em 1881

>> Relíquia – No altar, fica o corpo de São Pio Mártir, achado na catacumba de Santa Ciríaca, em Roma

>> Pinacoteca
– Em obras e fechada para visitação, reúne quadros, alfaias e relíquias de dom Viçoso

>> Herança – São da antiga ermida, os altares de Nossa Senhora da Piedade e Sagrado Coração de Jesus

>> Aroma – Na adega do santuário, são fabricados vinhos de uva e jabuticaba
 
>> Santa Ceia
– Tela pintada por Manuel da Costa Ataíde (1762-1830). Está no lado esquerdo da igrejaaR

>> Silêncio –
Nas catacumbas sobre a rocha da montanha, estão sepultados padres do velho seminário

>> Raros
– Na biblioteca, há raridades como um livro de 1489 e outro com anotações de dom Pedro II.