Jornal Estado de Minas

Mineiros dependentes de crack aderem ao chá de iboga para cura do vício

Eles dizem ter se livrado do vício após tratamentos em clínicas de SP. Médicos alertam para falta de pesquisas sobre a raiz e dizem que há efeitos colaterais perigosos

Jorge Macedo - especial para o EM
Sandra Kiefer

A raiz importada da África é triturara e o pó misturado com água - Foto: Beto Magalhaes/EM/D.A Press.
Desesperados para se livrar do crack, dependentes químicos e familiares de Minas Gerais estão buscando o tratamento alternativo do chá de iboga em clínicas de recuperação no interior de São Paulo e em Curitiba. A dose, única, custa entre R$ 4 mil a R$ 10 mil e não requer a internação do paciente. Apesar da falta de comprovação científica e dos riscos existentes de ministrar substância sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), os viciados em drogas pesadas, como cocaína e crack, recorrem ao uso desse fitoterápico, que seria capaz de eliminar a vontade de usar drogas e a síndrome de abstinência (fissura).

Relatos obtidos pela equipe de reportagem do Estado de Minas chegam a atribuir à iboga o poder de ‘cura’, de ‘renascimento’, de ‘apagar o passado’. “É uma sensação deliciosa acordar sem a menor vontade de usar droga, sem medo da recaída. A vontade simplesmente apagou-se da minha mente”, comemora o dono de bancas de jornais Wagner do Patrocínio, de 43 anos. Em função do envolvimento com o crack, Wagner caiu na sarjeta – usava até 20 pedras por dia. Ele passou um ano internado, em duas clínicas mas continuou com recaídas.


Há três meses, Wagner aceitou experimentar a iboga por influência da mulher, Angela Chaves, que descobriu a novidade em SP. “Bebi um pó parecido com canela, misturado na água. Na hora, é preciso deitar porque a gente perde o jogo das pernas. Depois, começa a ‘ver’ um monte de cenas ruins. Pessoas sendo esfaqueadas, coisas com chifres, bichos. A sensação dura umas cinco horas. Depois, você toma a segunda dose. Os pensamentos ruins somem e vêm coisas boas, como anjos”, revela ele, que recomendou o tratamento ao colega João Paulo Barbosa Neto, de 34 anos (leia Depoimento). “Voltei a ter vida social com minha mulher e minha filhinha”, diz Wagner.

O psiquiatra Dartiu Xavier, diretor do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes de Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), aplicou a dose de iboga a 75 voluntários. Do total, 51% dos pacientes conseguiram largar a dependência química. “A taxa de sucesso é alta. Chega a ser 10 vezes maior em relação à média de 5% de recuperação registrada nas internações em comunidades terapêuticas”, compara o psiquiatra.


 Este semestre, o psiquiatra dará entrada no Comitê de Ética da Unifesp com protocolo de estudo científico, inédito no país, na tentativa de comprovar a eficácia do uso da iboga no controle da dependência química em álcool e drogas. Caso seja aprovado, o ensaio clínico deverá comparar a reação dos viciados em crack, divididos no grupo que vai ingerir placebo e no outro, que receberá a fórmula original. “Mas os resultados serão a médio prazo”, alerta o pesquisador. Não há previsão de que, quando finalizados os trabalhos, a iboga possa ter autorização para ser usada como medicação controlada no Brasil.

Uso perigoso
Com formação em homeopatia, o psiquiatra Aloízio Andrade alerta que já é velha conhecida da medicina a técnica de propor aos pacientes a substituição de uma droga por outra. “É mais fácil e rápido abrir mão de uma substância nova do que da outra que já está usando há muitos anos. O que se faz é quebrar o ciclo vicioso do paciente, com a mudança do paradigma”, explica o médico. Segundo Andrade, que desconhece o uso da iboga em Minas Gerais, este papel costuma ser atribuído a alucinógenos ligados a rituais, sendo os mais populares a ayuaska e a mescalina.

Para Andrade, toda substância que age no sistema nervoso central pode desencadear quadros psiquiátricos e também neurológicos nos pacientes, como por exemplo convulsões. “Sem estudos científicos, não há clareza sobre a dose correta a ser oferecida por quilo de peso”, diz.

Wagner do Patrocínio - Foto: Beto Magalhaes/EM/D.A Press.Assim como Andrade, o psiquiatra gaúcho Félix Kessler admite nunca ter testado a iboga em seus pacientes.
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o psiquiatra Félix Kessler desconfia, por princípio, de promessas rápidas de cura para a dependência química. “Quem dera eu tivesse um remédio que pudesse dar aos meus pacientes na clínica. Descobriram que o tratamento alternativo dá bastante dinheiro e a onda de que a ibogaína cura o crack está pegando”, avalia o médico, para quem a melhor receita continua sendo o tratamento a longo prazo, com abordagem multidisciplinar e grupos de autoajuda. “O maior desafio é estimular o craqueiro a dar continuidade ao tratamento. É uma doença crônica como o diabetes – quem a tem enfrenta dificuldades para evitar doces”, completa.

Segundo a Anvisa, não há nenhum medicamento registrado no Brasil com o princípio ativo ibogaína. Dessa forma, a atribuição de alegações terapêuticas a este produto é ilegal, já que não há essa comprovação no Brasil. Entretanto, é legítima a importação de medicamentos sem registro no País, desde que para uso apenas pessoal e amparada pela prescrição de um médico que se torna o responsável pelo uso do produto.

Spa explora brechas na legislação


 “Por uma brecha na lei brasileira, consigo trabalhar com a iboga na forma de chá”, afirma o psicanalista clínico Gadyro Nakaya, dono do Spa Reabilit, em Arujá, no interior paulista. O spa é uma das entidades que trabalham com a substância. Amparado por cinco advogados, Nakaya já está importando mudas do arbusto no continente africano. Ele acredita no potencial de cura da planta que, criada em condições especiais na estufa em SP, ainda deve levar em torno de 10 anos para começar a produzir.

Ex-dependente químico de heroína, Nakaya diz ter se submetido a 40 internações no passado e que só conseguiu se livrar do vício após conhecer a substância. Ele garante que, em quatro anos, já “ibogou” centenas de pessoas em SP, inclusive artistas de tevê e músicos. “Acolhi um casal que passou a morar aqui comigo há um ano. Eles trabalham como caseiros do sítio. Os dois continuam limpos”, afirma ele. A clínica, registrada inicialmente como um spa, conta com clínico-geral e psiquiatra.
Antes de tomar a iboga, os pacientes são submetidos a uma bateria de exames, que comprovem abstinência de substâncias tóxicas de, no mínimo, sete dias. Depois, assinam um termo de responsabilidade. Só então são internados para ingerir a dose, que varia de acordo com o caso. O transe varia de 24 a 36 horas. A compulsão por drogas cessa ao final da “viagem”.     
No Instituto Brasileiro de Terapias Alternativas (IBTA), em Paulínea (SP), a atendente informa que é oferecida a iboga junto a terapias e medicina ortomolecular, segundo ela como forma de potencializar o efeito da substância. O tratamento dura cinco dias, com índice de 70% a 80% de recuperação. “A iboga corta a vontade de usar a droga, mas a pessoa precisa querer deixar a vida de viciado”, alerta. Há mais de 10 anos no mercado, a Clínica Cleuza Canan, de Curitiba (PR) solicitou o envio de perguntas por e-mail. Até o fechamento desta edição, porém, as perguntas não haviam sido respondidas..