Há exatos 100 anos, tropas de grandes potências do planeta, denominadas de forças aliadas, enfrentavam outra aliança, formada por Áustria-Hungria e Alemanha, no conflito conhecido como Primeira Guerra Mundial. Mais de 9 milhões de pessoas morreram em combate e tantos outros milhões sobreviveram aos ferimentos graças ao empenho dos aliados que, além de soldados armados, enviaram equipes médicas para trabalhar atrás das linhas de fogo.
Nas comemorações do centenário da vitória aliada sobre a Alemanha e a Áustria-Hungria, festeja-se também a marcante presença da missão médica brasileira nos últimos meses do conflito, da qual fazia parte um grupo de profissionais enviado pela então Faculdade de Medicina de Minas Gerais (hoje Faculdade de Medicina da UFMG). Os mineiros, sob o comando do doutor Eduardo Borges da Costa, se destacaram, principalmente em procedimentos cirúrgicos. E as façanhas desses homens estão bem guardadas e documentadas.
Antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, conflito de origens não muito claras, que envolviam questões econômicas, culturais e territoriais, a Itália era aliada da Alemanha e do Império Austro-Húngaro. Quando a luta começou, os italianos pularam fora e se juntaram às forças aliadas. O Brasil tentou não se envolver, respaldado pela Convenção de Haia, e declarou neutralidade. O governo não se mexeu nem mesmo ao ver o navio mercante Paraná atacado por submarino alemão, com morte de três brasileiros.
O povo, indignado, foi às ruas.
Houve outros ataques a navios brasileiros e, em apoio às forças aliadas, o país ficou responsável pelo patrulhamento do Atlântico sul. E, em vez de enviar tropa e armas para reforçar os 70 milhões de soldados que combatiam na Europa, decidiu mandar a campo missões médicas para curar os feridos em batalha. E no fim de 1917 embarcou o primeiro grupo de 96 profissionais, incluindo farmacêuticos, para hospitais da França, país que sofria assédio violento das tropas do bloco germânico.
Em 1918, começou a ser formada a segunda missão. A Falculdade de Medicina de Minas Gerais se omitiu e em 2 de julho decidiu formar uma equipe, capitaneada pelo doutor Eduardo Borges da Costa, para se juntar ao grupo de 92 profissionais, comandados por Nabuco Gouveia, que embarcou em navio no Rio de Janeiro em 18 de agosto de 1918 e, em 24 de setembro, chegou ao porto de Marselha.
A viagem de 36 dias não foi tranquila. A missão deixou o Brasil assolado pela gripe espanhola, que matou, entre outras pessoas, o presidente Rodrigues Alves, pouco tempo depois de tomar posse. O vírus estava espalhado por quase todo o mundo e, evidentemente, também embarcou no navio e estava presente na França. E, além de tratar dos feridos de guerra, os médicos brasileiros tiveram de cuidar de enfermos vítimas da epidemia.
No início do século passado, só havia três escolas da medicina no país: no Rio de Janeiro, na Bahia e no Rio Grande do Sul. Quando um grupo de 13 profissionais, entre os quais Eduardo Borges da Costa e Alfredo Balena, decidiu fundar uma faculdade em Minas, houve forte reação contrária dos cariocas. Chegaram a publicar um artigo no jornal A notícia, do Rio, sob o título “Basta de doutores”. Isso instigou ainda mais os mineiros e em março de 1911, nascia a Faculdade de Medicina de Minas Gerais.
Neste ano do centenário da Primeira Guerra Mundial, o tema das conversa na instigante sala de recepção do Centro de Memória, repleta de retratos, registros, quadros referentes à história acadêmica da faculdade, não poderia ser outro a não ser a aventura da missão médica mineira. Invariavelmente à mesa, o professor de clínicas médicas e diretor da unidade, João Amílcar Salgado, que, orgulhoso, conta: “Os europeus diziam que nossos médicos operavam com uma velocidade e elegância que eles não conheciam”.
Para Ajax Pinto Ferreira, professor de cirurgia e coordenador do centro, a missão médica mineira reafirmou um compromisso da faculdade de estar sempre presente nos momentos em que o país precise de serviços médicos. O angiologista Márcio de Castro Silva é um dos entusiastas da divulgação do trabalho dos mineiros na guerra. E se emociona em lembrar que o tio, José Camilo de Castro Silva, integrou o grupo.
Os profissionais brasileiros se espalharam por províncias francesas durante a guerra. Parte dos mineiros ficou em Paris, no hospital improvisado em um convento jesuíta. Borges da Costa atuou como braço direito de Nabuco Gouveia. A guerra terminou em 11 de novembro de 1918, mas a missão médica brasileira só foi oficialmente desfeita em fevereiro de 1919.
Médicos com patente militar
Os integrantes da missão levaram para a França apenas seus jalecos e instrumentos de trabalho. Mesmo assim, trabalharam fardados e com patente de oficial. Antes do embarque do grupo para a França, a faculdade deliberou em reunião de conselho, com ata específica, fazer uma solenidade de despedida, na qual foi servido um lanche, regado a champanhe. A missão mineira foi formada por Eduardo Borges da Costa (tenente-coronel), Renato Machado (capitão), Abel Tavares de Lacerda (capitão), José Camilo de Castro Silva (tenente), Salomão de Vasconcellos (1º tenente), Luiz Adelmo Lodi (2º tenente) e Manoel Taurino do Carmo (2º tenente).
LINHA DO TEMPO
1914 – Em 28 de julho começa a Primeira Guerra Mundial, com a invasão da Sérvia pelo Império Austro-Húngaro, que formava aliança com Alemanha
1914 – Em 4 de agosto, o Brasil declara neutralidade diante do conflito, respaldado pela Convenção de Haia
1917 – O vapor brasileiro Paraná, carregado de café, é afundado por submarino alemão na costa francesa
1917 – Em 11 de abril, depois de pressões populares e políticas, o Brasil rompe relações diplomáticas com o bloco germânico e tem outros navios atacados
1917 – Em 26 de outubro, o Brasil declara guerra à aliança Alemanha e Império Austro-Húngaro
1918 – Em 2 de julho, a Faculdade de Medicina de BH (hoje Escola de Medicina da UFMG) decide se juntar à missão médica brasileira que iria prestar serviço às forças aliadas na Europa
1918 – Em 18 de agosto, 96 médicos, entre os quais os mineiros, embarcam rumo a França para se juntar aos 96 profissionais de saúde brasileiros que desde o ano anterior já estavam na Europa. Em 11 de novembro a guerra acabou.