A professora, na tarde de dedicação e carinho, ensina português para concurso. O grupo aprende com humor e compromisso. A coordenadora do setor, Cleide Fernandes, quer saber quem ali teria interesse em participar de curso de fotografia. Quase todos levantam as mãos.
Já fora das paredes da biblioteca, o moço de meia idade, de óculos escuros, toca bengala calçada afora. Os passos não são lentos. Ele segue com a segurança de quem parece conhecer o caminho. Parado no sinal, aguarda ajuda para atravessar a Avenida Bias Fortes. Não é preciso muito tempo para que a bela mulher em roupa de ginástica ofereça-lhe o braço. Ele sorri e vence a faixa de pedestre. Agradece.
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Ganha a Rua da Bahia sozinho e alcança o ponto de ônibus. Pede ajuda ao homem barbado, que precisa repassar o pedido de auxílio, já que seu ônibus está logo à frente.
Muito abaixo, no hipercentro, a senhora de bengala se destaca na multidão. Ela anda com ritmo muito particular entre os passantes da Rua dos Tupinambás. Desvia de um obstáculo aqui, outro ali e faz muita gente abrir espaço e caminho. Já conhecida do vigilante, entra na agência do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O segurança lhe oferece o braço, gesto repetido na saída.
“Estamos fazendo uma reportagem... Será que a senhora poderia nos dar um depoimento?” “Sim”, ela responde.
Há 22 anos é funcionária da Secretária da Saúde do Estado de Minas Gerais. Para Luzia, só há escuridão para quem conhece a luz. Ela não se lembra. “É uma impressão que as pessoas têm de que tudo é escuro para nós. Mas o que é a escuridão? Eu não sei. Nós não vemos a luz e também não vemos a escuridão”, explica ela, mãe de cinco filhos.
A caminho do curso de informática na Praça Milton Campos, Luzia diz que, se tivesse poder por um dia, “distribuiria cartilhas para a população aprender a lidar com os cegos”. Ela conta situações de embaraço, como ser largada no canteiro central de movimentada avenida. “Tem gente que ainda faz pior. A gente pede ajuda, eles dão um tapinha no nosso ombro e dizem: ‘Vai!’”.
SATISFAÇÃO SILENCIOSA
Pedimos licença e a acompanhamos a distância até o ponto do ônibus, distante três quadras. Pelas ruas tomadas de gente, muita indiferença. Mas solidariedade também. O moreno gentil na Avenida Amazonas nem espera pelo pedido de ajuda: apresenta-se prontamente para auxiliar dona Luzia a chegar ao outro lado. O sorriso largo do voluntário é sinal de satisfação com a boa ação do dia.
O pipoqueiro se antecipa para evitar que nossa personagem trombe no carrinho, bem em frente ao Cine Brasil. Luzia para na calçada, orientada pelo barulho dos carros, perto da faixa de pedestre. Pede ajuda. O rapaz de mochila pesada nas costas lhe dá o braço.
A realidade vista por dentro
Era sábado. Até a hora ele guarda: 13h45. Aos 18 anos, em uma pelada – um “junta-junta”, como chama –, Nivaldo de Souza, de 50, viu companheiros, familiares e o campinho de futebol pela última vez. Uma bola perdida, tomada de velocidade, tamanho e força suficientes, cegou os dois olhos do atleta amador, craque para a família e amigos queridos. A imagem que ficou mais forte na memória é o rosto da mãe, Marlene, na época, com 28 anos. “É a imagem mais viva e mais bonita que guardo comigo”, diz, sorrindo.
Ouça a história de Nivaldo de Souza
Tecnicamente, o diagnóstico da fatalidade: descolamento da retina, com glaucoma e atrofiamento do globo ocular. Os quatro meses que se seguiram ao acidente foram de revolta e dor. “Difícil aceitar… você, cheio de saúde, aos 18 anos, de repente, deixar de ver para sempre”, recorda Nivaldo. Foram tempos de muita reflexão para “renascer” inteiro, sem sombras no coração, com “a vida vista por dentro”.
O rapaz se reergueu com o apoio da família e dos amigos mais próximos. Fez curso técnico de radiologia e encarou carreira no Hospital Odilon Behrens até se aposentar por invalidez, mais de duas décadas depois. Jovem ainda, forte e cheio de disposição, pai da Simone, de 22, não deu conta de ficar em casa, no Bairro Alto Vera Cruz, na Região Leste de Belo Horizonte. Solteirão, tornou-se vendedor ambulante, para a alegria de novos amigos no hipercentro da capital.
Popular, Nivaldo é reconhecido por onde passa, nos quarteirões entre as avenidas Afonso Pena e Olegário Maciel. Firmou ponto na Rua Carijós e ganhou a simpatia de outros dois companheiros deficientes: João Gonçalves de Souza, de 64, e José Robson da Silva, de 43. Ambos ambulantes, com histórias de vida não menos tocantes. João, nascido em Goiás e vindo nos anos 1970 para Belo Horizonte, também é vizinho de bairro, no Alto Vera Cruz.
O goiano é outro que “foi bom das vistas um dia”. Adolescente, aos 14, João caiu de costas numa traquinagem, bateu a cabeça e teve o cérebro afetado. Com a queda, perdeu completamente a visão – como Nivaldo. As imagens da infância, “de muita pobreza e dificuldade”, em Pires do Rio, ele nunca quis relembrar. “Eu me revoltei demais. Só me lembro disso. Aí, tive que começar do zero a minha vida”, conta.
“Minha tristeza maior com a cegueira tão jovem foi de ter perdido o pouco que podia ter, em termos financeiros e morais”, lamenta, lembrando emocionado a “decepção em família”. Nos anos 1990, o vendedor ambulante voltou à terra natal para cuidar dos pais adoecidos. “No ano passado, com a morte dos velhos, sem nada que me prendesse a Goiás, voltei para Minas”, conta. Sensorial aguçado, João gosta da energia da capital mineira. “Gosto daqui. Tenho amigos e me sinto respeitado”, diz.
Do trio amigo, José Robson é o caçula. Barbudo, gentil, contente com a conversa, reclama inclusão e acessibilidade. Letrado, morador de Betim, cita Jorge Amado e Castro Alves. “Se tivesse poder por um dia, tomaria providências para que os cegos fossem mais respeitados. Nunca enxerguei, mas tem um mundo de que gosto muito dentro de mim”, define, sorrindo..