Jornal Estado de Minas

Solução da crise do Rio São Francisco não depende só de chuva

Especialistas alertam que apenas a chuva, mesmo que venha com grande volume, não será capaz de devolver a vazão ao Velho Chico e reverter a crise que seca nascentes e afluentes

Jorge Macedo - especial para o EM
Luiz Ribeiro, Landercy Hemerson

Pedro Ferreira
Enviado especial


Poucos quilômetros abaixo do ponto em que nasce, no Parque da Serra da Canastra, o curso d'água já exibe sinais de assoreamento. Processo de recuperação deve contemplar toda a bacia hidrográfica - Foto: Leandro Couri/EM/D.A Press

São Roque de Minas e Montes Claros – A estiagem que reduziu de forma drástica o volume do Rio São Francisco e pela primeira vez na história secou sua principal nascente faz com que as atenções se voltem para o  céu e para as previsões da meteorologia, à espera de que a chuva chegue para salvar o Velho Chico. Porém, especialistas alertam que nem mesmo a temporada chuvosa e um bom volume pluviométrico serão suficientes para a recuperação total, que depende do reabastecimento do lençol freático e de ações para a revitalização da bacia. Ninguém se arrisca a prever de quanto tempo o curso d’água precisará para superar a crise atual e, entre ambientalistas, há quem chame atenção para o fato de que o processo pode consumir anos. Sem garantias nem previsão de que a situação se normalize, a Câmara Consultiva do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco se reúne hoje em Belo Horizonte para discutir medidas emergenciais, entre elas a proposta de racionamento do uso da água.

O biólogo Humberto Mello, do Aquário do Rio São Francisco, localizado no Zoológico de Belo Horizonte, considera como um aviso o fato de a nascente do rio, na Serra da Canastra, ter secado. “As ações preventivas não devem partir apenas dos governos, mas de toda a sociedade. Há vários trechos do São Francisco em que é urgente a recomposição da mata ciliar. É importante que ribeirinhos preservem a vegetação, para evitar o assoreamento do curso fluvial”, explicou, acrescentando que os ciclos da vida dos rios podem exigir até uma década para que a vazão se recupere.


O ambientalista Apolo Heringer Lisboa, coordenador do Projeto Manuelzão, ligado à UFMG, lembra que percebeu a redução do volume do São Francisco desde julho do ano passado, quando percorreu toda a extensão da nascente até a foz (2.700 quilômetros), em trabalho de pesquisa. Para ele, mesmo que o próximo período chuvoso seja intenso, o rio não deve recuperar o volume normal, já que o problema do secamento das nascentes está relacionado à redução do lençol freático.

Apolo explica que grande parte da água que garante a recarga das nascentes do Velho Chico vem do Aquífero Urucuia, que abrange o estado de Goiás.

“A atividade intensa do agronegócio, que usa poços profundos para captação, diminuiu a vazão, que era mantida há milhões de anos. Assim, mesmo se chover muito agora, não será possível repor o estoque perdido do subsolo”, afirma o especialista, lembrando que 75% do volume retirado vai para a irrigação. “Se chover forte, o que vai ocorrer é que a água vai cair e não vai se infiltrar no solo, que está impermeabilizado pelo desmatamento”, comenta o coordenador do Manuelzão, que cobra estudos que mostrem como a captação subterrânea vem afetando a disponibilidade de águas superficiais na bacia.

Veredas

A professora Raquel Inês Castro, do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), ressalta que o trabalho de revitalização do São Francisco não passa apenas pela recuperação do leito principal, mas de todos os afluentes, o que pode levar anos. Ela conta que, em trabalho recente, constatou a destruição de veredas – áreas de nascentes – no município de Buritizeiro, perto do Rio São Francisco. “As veredas funcionam como reservatório para a bacia hidrográfica. Por isso, precisam ser preservadas”, observou.

Com o agravamento da seca que afeta nascentes ao longo de todo o curso, a secretária do Comitê da Bacia do São Francisco, Silvia Fredman, afirma que a determinação da Câmara Consultiva do órgão, que tem 30 integrantes, é adotar todas as medidas no sentido de dar prioridade ao abastecimento humano e à manutenção de animais nas comunidades ribeirinhas, enquanto persistir o período crítico da estiagem. Ela lembra que ações no território mineiro são de fundamental importância para toda bacia, pois, dos 504 municípios alcançados pelo São Francisco, 240 estão em Minas, estado que responde por 72% das águas da bacia.

No encontro de hoje em BH, o comitê vai discutir a portas fechadas medidas para minimizar os efeitos da seca, ações voltadas para a revitalização da bacia e para o aumento da quantidade e da qualidade da água. Caso haja opção por racionamento, a decisão deve ser comunicada à Agência Nacional de Águas (ANA), que será a responsável por implementar a medida, já que trata-se de um rio federal. Todos os usuários que têm outorgas ao longo do leito seria afetados, entre fazendeiros, indústrias e projetos de irrigação, como o Pirapora e o Jaíba, no Norte de Minas, onde os agricultores já enfrentam problemas.

Ontem o governo de Minas, por meio de nota, salientou que as ações na calha do Velho Chico são de domínio da União, mas informou que em 2013 o Sistema Estadual de Meio Ambiente investiu, em parceria com comitês de sub-bacias, cerca de R$ 1,2 milhão em projetos de melhoria da quantidade e da qualidade da água. Também informou ter aplicado cerca de R$ 1, 5 bilhão, entre 2003 e 2014, na revitalização do Rio das Velhas, o principal afluente da bacia. O texto acrescenta que não há racionamento em cidades atendidas pela Copasa na Bacia do São Francisco e que os produtores do Projeto Jaíba foram orientados a adotar economia e irrigar apenas o indispensável.

Em vez de água, barro pisoteado


Do lugar onde nasceu há 50 anos, o produtor rural Adilson Rafael Almeida observa a beleza, não tão exuberante como antes, da Cachoeira Casca D’Anta, onde o Rio São Francisco dá um salto de 186 metros, 16 quilômetros depois da nascente, no Parque Nacional da Serra da Canastra, em São Roque de Minas, Centro-Oeste do estado. Embora a fonte principal do rio tenha secado pela primeira vez na história, outros mananciais e afluentes ainda garantem que o Velho Chico se mantenha correndo, mesmo que com volume reduzido.

Mas Adilson não tem esse privilégio no córrego que corta suas terras.

O agricultor se entristece ao olhar o riacho onde o gado matava a sede, que secou há um mês. “O córrego corria o ano inteiro, até mesmo na seca”, disse. A propriedade fica a 2 mil metros da cachoeira onde o São Francisco ganha impulso para percorrer 2,7 mil quilômetros até chegar ao Atlântico. “Onde os bois tomavam água, agora é só atoleiro. O gado tem que andar mais para matar a sede”, lamentou ele. “Estou preocupado como vai ser daqui a uns 10 anos. Aqui tinha um monte de nascentes com matas em volta, mas o fogo queimou tudo”, disse.

A preocupação de Adilson é tanta que nos últimos incêndios florestais ele ficou até de madrugada, com outros sitiantes, apagando o fogo. “Engoli muita fumaça, mas valeu a pena. Conseguimos salvar três nascentes nessa terra em que me criei”, disse.

 

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