“A cidade foi inaugurada sem contar com serviços básicos de abastecimento de água e tratamento de esgoto. Tal situação gerava uma série de problemas de saúde pública, com a proliferação de doenças, entre elas, esquistossomose e gastroenterite”, diz o historiador Yuri Mello Mesquita, autor da dissertação de mestrado Jardim de asfalto: água, meio ambiente, canalização e as políticas públicas de saneamento básico em BH.
“As condições sanitárias, naquela época, eram muito ruins, e a falta de água impedia a higiene correta e também que os alimentos fossem bem lavados. Nas décadas de 1950 e 1960, houve um número elevado de casos de gastroenterite. A cidade crescia, construíam-se moradias, mas o sistema sanitário não acompanhava a explosão demográfica”, diz Yuri, que atua como diretor do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH), vinculado à Fundação Municipal de Cultura.
O pior mesmo era o desespero de parte da população para conseguir água. Sem o abastecimento, moradores se viravam como podiam, enchendo baldes, latas e outros vasilhames até mesmo em córregos poluídos, nos quais o esgoto era despejado diretamente. Fotos do arquivo do Estado de Minas mostram famílias inteiras na fila para garantir sua parte, aglomeradas diante de torneiras em praça pública ou caminhando com rodilhas na cabeça, como se acompanhassem o ritmo do velho samba: Lata d'água na cabeça/Lá vai Maria, lá vai Maria/Sobe o morro e não se cansa/Pela mão leva a criança/Lá vai Maria…
Quem viveu aqueles anos difíceis torce para que a história não se repita. Com quatro décadas de experiência na área de saneamento, o engenheiro e professor universitário Vandeir Rodrigues Ferreira, de 64 anos, morador do Bairro Nova Vista, na Região Leste da capital, lembra bem da cisterna na casa do seu pai e das mulheres pegando água para lavar roupas. “O problema era tão grave, que o prefeito Jorge Carone (gestão de 1963 a 1965) ganhou a eleição prometendo resolver a questão de abastecimento. O cartaz da campanha dele tinha uma torneira jorrando água”, diz Vandeir.
Caminhões-pipa Como recurso, entravam em ação os caminhões-pipa, embora a frota não fosse suficiente para suprir a demanda. Muita gente, então, começou a dar o popular “jeitinho” para ser atendido na frente dos outros, fomentando, assim, o comércio irregular. Isso mediante pagamento de propinas aos motoristas, que enchiam primeiro as caixas-d’águas ou latas de quem “molhasse” a sua mão. “Até meados da década de 1970, o fornecimento de água aos belo-horizontinos representou um dos maiores problemas para a prefeitura”, lembra Yuri.
Mesmo com a situação de falta de água na torneira, a população não perdia o bom humor. E mostrou isso, no fim da década de 1950, quando foi anunciada a construção de uma adutora. O sistema era anunciado como “obra do século”, mas, como os serviços estavam sempre atrasados, acabaram ganhado o nome de “obra dos 100 anos”, conta o historiador.
A situação começou a melhorar em 1973, com a inauguração do Sistema Rio das Velhas, em Nova Lima, na Grande BH. Aquele ano, sem dúvida, entrou nessa trajetória como divisor de águas. Também em 1973, o governo estadual criou a Companhia Mineira de Água e Esgotos (Comag), que deu origem à Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), enquanto o governo federal implantou o Plano Nacional de Saneamento (Planasa), definindo metas a serem alcançadas pelo país na área de saneamento e destinando recursos para a execução dessa política. Em 1974, pela lei 6.475, de 14 de novembro, a Copasa entrava em operação.
Com a atual onda de calor e falta de água, Yuri ressalta que o problema é mundial. “É preciso acabar com o desperdício de água e preservar os recursos naturais, principalmente as matas ciliares de córregos, ribeirões e rios”, afirma.
LINHA DO TEMPO
1897 – Em 12 de dezembro, a capital mineira é inaugurada sem ter ainda serviços básicos como fornecimento de água e rede de esgoto
Década de 1970 – Do início da fundação da capital a meados dos anos 1970, buscar água na lata em bicas, córregos e nascentes fazia parte do cotidiano das famílias belo-horizontinas
1973 – Criação, pelo governo estadual, da Companhia Mineira de Água e Esgotos (Comag), que deu origem à Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa)
1973 –Governo federal cria o Plano Nacional de Saneamento (Planasa), definindo metas a serem alcançadas na área de saneamento e destinando recursos para essa política
1973 – Departamento Municipal de Águas e Esgoto (Demae), então encarregado do saneamento em BH, adere à Comag e se beneficia dos recursos federais do Planasa.
1973 – Inaugurada o Sistema Rio das Velhas, em Nova Lima, na Grande BH, que começa a resolver o problema de falta de água na cidade
1974 –Pela lei 6.475, de 14 de novembro, Comag passa por modificações e se torna Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa)