Jornal Estado de Minas

Um sonho real

Menina de 10 anos, que cantava ópera em ferro velho, ganha vaga em coral

Menina de 10 anos que canta ópera e mora com os pais nos fundos de um ferro-velho é convidada a visitar o Palácio das Artes para assistir ao espetáculo Rigoletto. Faz teste de voz e é admitida no coral infanto-juvenil

Márcia Maria Cruz
A maestrina Lara Tanaka, do coral infanto-juvenil do Palácio das Artes, conduziu o teste de voz. Natasha mostrou talento e ganhou uma oportunidade - Foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press

Como se fosse o coelho branco do País das Maravilhas, a música conduziu Natasha Oliveira Silva, de 10 anos, a um universo de sensações e descobertas. A exemplo da personagem Alice, do escritor Lewis Carroll, a menina, natural de Santa Luzia, na Grande BH, adentrou um mundo desconhecido, que povoava os seus sonhos, mas que estava longe da realidade. O amor pelo canto lírico, despertado em meio a um ferro-velho, a levou ao Palácio das Artes, no Centro da capital. E foi no Grande Teatro que ela partiu para uma viagem no tempo até a Paris de 1850, eternizada por Giuseppe Verdi na ópera Rigoletto. Entre tantas novidades, a pequena agigantou-se. Apesar do corpo franzino e aparentemente frágil, soltou a voz em audição conduzida pela maestrina Lara Tanaka. Autodidata e ainda sem saber ler partituras, a menina foi aprovada e convidada a integrar o coral lírico infanto-juvenil da Fundação Clóvis Salgado, que sempre busca talentos para lapidar.


Quando as cortinas vermelhas se abriram, os olhos de Natasha se fixaram no Duque de Mântua, que tramava conquistar Gilda. Quem deu vida à musa foi a soprano Gabriella Pace, que dedicou o espetáculo à menina espectadora.

Horas antes, no camarim, os papéis estavam invertidos: Gabriella e o barítono italiano Deivid Cecconi  ouviam a pequena notável, descoberta pelo Estado de Minas no comércio de sucatas. “Bravo, bravo!”, disse Deivid. O cantor, que impressiona pela voz grave e pelo porte, não resistiu e pegou a menina no colo para um longo abraço. “Quando ele fala bravíssimo quis dizer que você é muito, muito boa. Quando eu entrar no palco, vou cantar para você”, disse Gabriela a Natasha.

Reservada, mas nem um pouco tímida, a menina de Santa Luzia mostrou-se curiosa: fez perguntas, mas respondeu muito mais. Os funcionários da fundação queriam conhecê-la e, mais do que isso, desejavam ouvi-la cantando. Do último sábado, quando a reportagem e o vídeo contando a história de Natasha foram publicados, a vida dela passou por uma reviravolta digna de histórias encantadas. A menina que, em meio aos descartes, apaixonou-se pelo canto lírico assistiu pela primeira vez a uma ópera. “Quando lemos a reportagem, foi uma comoção geral. Decidimos realizar o sonho dela”, afirmou Fernanda Machado, presidente da Fundação Clóvis Salgado.

Tudo era novo e superlativo para Natasha, inclusive o tamanho da cadeira de onde assistiu ao espetáculo. De tempos em tempos, sussurrava as impressões no ouvido da mãe, Renata Rejane de Oliveira, de 28, que a acompanhou. “É a paixão dela.
Começou a cantar em um projeto da Prefeitura de Santa Luzia e queríamos encontrar outras oportunidades”, disse a mãe, que também nunca havia ido ao Palácio das Artes. No repertório da pequena notável, músicas do cancioneiro brasileiro, mas também músicas em espanhol e inglês.

Acompanhada da mãe e da avó, a menina chegou duas horas antes para conhecer o centro artístico. “Ouvi falar daqui uma única vez. Uma amiga me disse que aqui era muito grande, tipo um palácio. Mas ela nunca veio”, contou Natasha. E ela pôde conhecer cada cantinho. Subiu no palco, visitou os bastidores e foi ao camarim conversar com o elenco de Rigoletto. Com o aproximar do espetáculo, a expectativa era tamanha que a menina não queria nem mesmo lanchar. Ela parecia tentar entender o que estava ocorrendo.
De repente, estava imersa no universo da música, dos grandes espetáculos, lugares que ela conhecia somente por meio da internet. A visita potencializa o sonho de se tornar uma cantora e brilhar. “Já me imaginei no palco. Na hora, vou ficar com vergonha, mas vai dar certo.”

Em um mundo que não conhecia, Natasha se sentiu à vontade ao lado de integrantes do elenco de Rigoletto - Foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press

EMOÇÃO O ponto alto da visita foi o encontro com os solistas da ópera e cantar para eles “Ela é maravilhosa, fantástica. Estou emocionado. O canto não é só voz, é o que tem dentro. Quando temos dentro de nós uma grande pessoa, a voz é um reflexo ainda maior. Você nos deu de presente algo muito bonito”, disse Deivid para a menina. A fundação reconheceu em Natasha um talento que precisa ser lapidado. Ela poderá estudar canto no coral. “É nosso dever fomentar o conhecimento e o gosto artístico. Como é bom encontrar essa menina em Santa Luzia.” No entanto, para frequentar as aulas, terá que mudar de horário e até mesmo de escola. Incentivadora da filha, Renata disse que fará o necessário para que ela possa desenvolver o dom.

No final do primeiro ato, a secretária de cultura Eliane Parreiras foi ao encontro de Natasha para conhecê-la. “Quando vi o vídeo, fiquei encantada. É o poder transformador da arte. Sem formação dentro de casa, ela foi buscar o canto lírico”, disse. No intervalo do segundo para o terceiro ato, a menina custava a acreditar no que estava ocorrendo. “Um dia depois da publicação da matéria, eu pensava se tudo era mesmo verdade”, lembra.

Mesmo não habituada a ficar acordada até tão tarde da noite, Natasha não fechou os olhos em nenhum momento. “Às 21h30, todo mundo lá em casa está dormindo. Nunca fico acordada até essa hora.” A ópera teve início às 20h e se estendeu até as 23h. Ela se impressionou com o público, que lotou o teatro para a última récita da montagem de Rigoletto.

No segundo ato, a expectativa era grande para saber o desfecho do enredo que envolve o personagem Rigoletto, a filha Gilda e o duque de Mântua. Também ficou encantada como a história pode ser toda cantada. “Foi muito bom. Vou indicar o Palácio das Artes para outras pessoas”, disse. Ao terminar o espetáculo, a menina cantarolava uma das árias mais famosas de todos os tempos, La donna è mobile.

 

 

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