O medo da violência à noite tem mudado a rotina de moradores de rua em Belo Horizonte. Com receio de agressões e até tentativas de assassinato, muitos deles dizem evitar dormir profundamente de madrugada e preferir tirar cochilos durante o dia. A mudança de hábito se reflete em parques e praças da capital, onde flagrantes de pessoas dormindo de manhã ou à tarde são mais frequentes, segundo relatos de comerciantes e moradores. Ontem, um grupo grande de pessoas descansava em cobertores ou pedaços de papelão no Parque Municipal, no Centro, e um homem chegou a armar uma rede pela manhã na Praça Diogo de Vasconcelos, na Savassi, Região Centro-Sul. Também há grupos que se concentram atrás da Igreja Sagrado Coração de Jesus, no Santa Efigênia.
Frequentador do Parque Municipal, Divino da Silva, de 56 anos, passa os dias com a companheira e amigos dormindo no gramado e só sai à noite, quando os portões são fechados. Ele vive nas ruas desde 2010 e conta que à noite, por medo, sempre muda de lugar. “Tenho medo de covardia. Tem gente que é agredida quando está dormindo”, disse. “Nas ruas, durmo com um olho aberto e outro fechado, sempre uma faca na mão para me defender”, completou. Claudinei Correia, de 42, também passa as tardes no parque, à exceção de segunda-feira, quando o local é fechado para manutenção. “Segunda-feira é um tédio”, descreve. Ele conta que, com o parque fechado, passa o dia na “Praça da Guerra”, como moradores de rua chamam um canteiro no final da Alameda Ezequiel Dias.
Em censo feito pela Prefeitura de Belo Horizonte em novembro do ano passado, 44% dos 1.827 moradores de rua entrevistados disseram ter sido vítimas de violência praticada entre eles mesmos, em brigas motivadas por uso abusivo de álcool e drogas, disputa de território e outras desavenças. Também houve relatos de agressões por agentes públicos por civis, como porteiros e seguranças. De 2011 até ontem, foram 124 assassinatos de pessoas com trajetória de rua na capital mineira, segundo o Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua (CNDDH), composto por representantes do Ministério Público, da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal, da Pastoral da Rua e de duas organizações ligadas a pessoas com trajetória de rua.
Mesmo com medo de violência, há moradores de rua que se recusam a passar as noites em abrigos da prefeitura. Muitos não gostam de cumprir as regras dos locais. “Há horário para tudo”, reclamou o encanador Luiz Batista Oliveira, de 36. Wellington da Silva, de 39, nas ruas há oito anos, também evita os abrigos. “Gosto da rua. Já me acostumei”, disse ele, que estende um cobertor no gramado do Parque Municipal para dormir durante o dia. “Almoço quando alguém oferece comida ou consigo R$ 2 para comer no restaurante popular”, contou. À noite, Wellington costuma ficar em frente ao Hospital de Pronto-Socorro João XXIII (HPS), onde, segundo ele, há pessoas que distribuem alimento durante a madrugada. O movimento de pacientes e policiais também o deixa mais seguro.
Regras Para a coordenadora do Comitê de População de Rua da Prefeitura de Belo Horizonte, Soraya Romina, viver nas ruas não é digno e nem seguro para ninguém. “As pessoas ficam expostas às intempéries do tempo, ao preconceito, à invisibilidade social e à violência”, disse. Ela ressalta, porém, que há um conjunto de regras que as pessoas com trajetória de rua têm que cumprir nas unidades de atendimento institucional, como os abrigos. No albergue, são 400 pessoas pernoitando e há horários para chegar, de jantar, dormir e sair, segundo Soraya. “Se não houver regras, você não consegue fazer a gestão do espaço”, disse, lembrando que as pessoas não podem usar álcool ou outras drogas. “Nas ruas, muitas vezes as pessoas têm uma falsa ilusão de que ali elas estão de alguma forma protegidas pelo grupo que participam. Têm também uma falsa impressão de liberdade, de que pode usar drogas, dormir a hora que quiser e fazer outras atividades que acham que devem”, disse.
Nos albergues, os moradores de rua podem chegar por volta das 18h e são atendidos por assistentes sociais e psicólogos. Eles recebem um kit com toalha, sabonete, xampu e escova de dente antes do banho. Jantam e podem ficar até 23h fazendo atividades esportivas, vendo TV ou lendo. Às 23h, todos têm que ir para a cama, pois há muitos deles que trabalham e estudam no dia seguinte.
Pela manhã, o café é servido e depois todos voltam para as ruas. “Durante o dia, temos dois centros de referência para a população em situação de rua, um no Barro Preto e outro na Floresta, onde eles podem ir, se higienizar, lavar suas roupas, almoçar e participar de oficinas culturais e artísticas. Também são atendidos por psicólogos e assistentes sociais”, afirmou Soraya.