A evolução do transporte público de Belo Horizonte está intimamente ligada ao crescimento da capital. Bonde, trólebus, ônibus, metrô e o transporte rápido por ônibus – o BRT (Move) – estão na identidade deste serviço oferecido aos mineiros ao longo dos anos. Essencial para a locomoção das pessoas nas cidades, o transporte coletivo tem papel social e econômico, já que democratiza a mobilidade, à medida que facilita o ir e vir de todos os cidadãos que dependem ou escolhem usá-lo. No entanto, a trajetória desse serviço, necessário e imprescindível, nunca foi satisfatória, jamais atendeu as aspirações dos usuários. O reflexo está nas ruas: engarrafamentos e gargalos cada dia piores, enlouquecendo os cidadãos.
A pesquisadora de história da Fundação João Pinheiro (FJP) Maria do Carmo Andrade Gomes, autora do livro Omnibus: Uma história dos transportes coletivos, explica que “o transporte sempre foi deficitário”. O livro, patrocinado pela BHTrans e lançado no contexto do centenário de BH, é um registro rico da história do transporte público da cidade (o recorte foi até a criação da BHTrans) com intensa pesquisa histórica de documentos oficiais e do cotidiano da população nos jornais. “O transporte é um serviço público que, na maior parte da história, foi oferecido pela iniciativa privada.
Maria do Carmo explica que a capital teve o crescimento urbano desenfreado e pouco planejado “e o transporte coletivo foi submetido ao crescimento desordenado”. Ela conta que, nas décadas de 1950 e 1960, com a chegada dos ônibus a diesel, os interesses comerciais e empresariais determinaram o crescimento da cidade. Ou seja, “o serviço de transporte público chegava a locais (regiões periféricas) antes mesmo de estruturas básicas, como água e esgoto”. Enfim, sem planejamento seguro, o serviço público foi privatizado com uma lógica comercial no assentamento da população. “A verdade é que o desequilíbrio urbano se deu nas décadas de 1950 e 1960. BH foi planejada ao nascer, mas o projeto não teve sustentação no tempo. O historiador não pode julgar o plano do final do século 19, quando certamente tinha racionalidade e generosidade de todos os aspectos, mas a cidade cresceu com pouco planejamento, que agregasse o transporte e a evolução da capital”, diz Maria do Carmo. Historicamente, segundo ela, na segunda metade de 1950, com o governo de Juscelino Kubitschek, foi feita a opção pelo transporte sob rodas e, desde então, a indústria automobilística passou a ter grande força e peso. A valorização da cultura do automóvel virou até um processo de inclusão da população (ter um carro). “A opção de abandonar os trilhos foi gradativa, uma decisão geral do país. A ferrovia perdeu espaço para as estradas de rodagem; nada de bondes ou trolebus, asfaltamento e desvio dos rios para ter ruas livres para correr o transporte sobre rodas. Daí chegamos ao modelo de hoje – a cidade não comporta mais carro e ônibus – um disputa espaço com o outro”, destaca a pesquisadora da FJP.
COLETIVO De acordo com Maria do Carmo, o Move chega para tentar solucionar um problema que é muito maior. Mesmo assim, só quem não pode ter carro usa o transporte público, numa total “inversão de bom planejamento”. A pesquisadora lembra ainda que, apesar da visão romantizada do bonde, o estudo para o livro Omnibus mostrou que “ele também era precário, havia acidentes, desconforto e luta pelo valor da passagem”. Por isso, ela enfatiza que, “da perspectiva histórica , o problema ou o culpado não é um partido político, esse ou aquele prefeito ou governador, é muito mais complexo. Há também uma estrutura familiar que domina o negócio do serviço público. Muitos têm uma visão catastrófica, mas há raízes mais profundas – o que não redime os políticos e os empresários de hoje. A solução não será de uma hora para outra”. Ela esclarece que “o grande problema é a forma de relação entre o poder público com o privado, que precisa trabalhar sempre em prol do interesse coletivo. Existem ações, a cidade tem o Plano Diretor, mas tem de ser mais agressiva no tratamento da questão”.
Yuri Mesquita, diretor do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, reforça a análise de Maria do Carmo. Ele confirma que os problemas do transporte público da capital são antigos, e o pico assustador foi no fim dos anos 1940 e 1950, com questões sérias, já que a cidade crescia e enfrentava problemas como aumento da frota de carros, falta de água e de gêneros alimentícios, especulação imobiliária, crescimento de vilas e favelas, falta de lugar para enterrar os mortos, lixo nas ruas.
LINHA DO TEMPO
1902 – Em 7 de setembro é inaugurada a primeira linha de bonde elétrico em BH, com festa na Avenida Afonso Pena, esquina com Rua da Bahia, no Centro. Trilhos começaram a ser implantados dois anos antes
1947 – No ano em que BH ganha autonomia administrativa, o sistema de transporte está precário. O prefeito Otacílio Negrão de Lima faz consulta popular em busca de alternativas
1953 – O sistema de transporte por trolebus (ônibus elétricos) é inaugurado pelo prefeito Américo Renné Giannetti. Os primeiros quatro veículos são de fabricação norte-americana
1960 – Ônibus a diesel fortalecem o transporte coletivo de BH. Ao longo da década, esse transporte se consolidaria como primeiro no atendimento da população, então na faixa de 1 milhão de habitantes
1963 – Desativadas as últimas linhas de bonde de BH, que circulavam nos bairros Cachoeirinha, Gameleira, Bom Jesus, Horto, Padre Eustáquio e Cidade Ozanam
1986 – O metrô de BH, concebido no fim da década de 1970, entra em operação. A linha vai hoje do Vilarinho ao Eldorado
2010 – Começam obras do BRT, hoje conhecido como Move, sistema com pistas exclusivas e ônibus articulados
2014 – Em 8 de março foi inaugurada a primeira fase do Move, o sistema de BRT (Bus Rapid Transit) de BH, trecho da Avenida Cristiano Machado (Estação São Gabriel/Centro).
Fique ligado
No museu...
Coleção Transporte – Itinerários Derradeiros. Nos jardins do Museu Histórico Abílio Barreto, encontra-se a exposição permanente, onde estão expostos veículos e maquinaria que estabelecem relação direta entre o desenvolvimento do sistema de transporte e o processo de evolução urbana de BH até meados do século 20: carro de boi, locomotiva a vapor, bonde elétrico, coche e elevador.
Serviço
Local: Museu Histórico Abílio Barreto
Endereço: Avenida Prudente de Morais, 202 – Cidade Jardim
Visitação: terça-feira a domingo, das 7h às 18h; quarta e quinta-feira, das 7h às 21h.
Contato: (31) 3277-8573
Entrada franca
Célio Freitas, diretor de planejamento da BHTrans
O futuro
“Tudo que é complicado requer planejamento intensivo. Em 1993, a BHTrans assumiu o transporte público de Belo Horizonte. Sabemos que a qualidade desse serviço afeta e melhora a vida de toda a cidade. Antes de chegarmos ao sistema BRT, é importante destacar três mudanças determinantes para a evolução do transporte na capital. A PBH fez duas licitações para o transporte coletivo – um avanço; houve a mudança no embarque nos ônibus, que reduz muito a estatística de acidentes; e acabou com o “chiqueirinho”, que era degradante. O sistema geral, vem se aperfeiçoando desde a década de 2000 com a implantação da bilhetagem eletrônica (cartão BHBus) e carga à bordo. A partir de 2010 foi elaborado um plano de mobilidade que terá como legado 220 quilômetros de sistemas estruturais com dois grandes focos: BRT e metrô. O primeiro, com financiamento do governo federal, começou em 2010, e a última fase foi encerrada em agosto com as últimas linhas da Vilarinho e Estação Venda Nova. Os manuais de transporte estabelecem que são seis meses para refino e, partir de fevereiro, teremos dados concretos de avaliação. O que já temos são depoimentos dos usuários, bem positivos, principalmente quanto a redução da viagem de 37, 40 minutos para 10. Benefício indireto foi a revitalização das estações das avenidas Santos Dumont e Paraná, que revigoraram e reclassificaram o comércio da região. Há ainda os 70 quilômetros de ciclovias (o projeto é ter 200) e chegar ao Barreiro e Venda Nova) e 400 bicicletas compartilhadas. Estão em andamento projetos executivos para as linhas 2 – entre Barreiro e Calafate – e 3 – entre a Lagoinha e a Savassi e o Alto Santa Lúcia – do metrô e a extensão do BRT à Avenida Amazonas, até o Barreiro. Estudos estão adiantados, mas sem data. Outra medida é aumentar as faixas exclusivas de ônibus para 100 quilômetros. O transporte público deve fazer o cidadão deixar o carro em casa.”