Jornal Estado de Minas

Meninas que vivem em abrigos da capital têm normas rígidas

Roupas de cama e comida deve ser igual para todas. Desde cedo, os adolescentes são incentivados a construir a autonomia, participando de cursos profissionalizantes, monitorias e aulas de música

Sandra Kiefer
Aos 13 anos, Vanessa estuda muito e não vê a hora de começar a trabalhar e deixar o abrigo - Foto: Tulio Santos/EM/D.A Press
A entidade de acolhimento das meninas acima de 12 anos é uma verdadeira mansão, com três andares, duas piscinas e jardins bem cuidados em um bairro de classe média de Belo Horizonte. Não há placas para identificá-la como abrigo. Deveria ser apenas uma casa comum, mas o conceito de instituição impõe-se logo na entrada. Perto da porta estão enfileiradas 14 mochilas escolares, idênticas, pertencentes a cada uma das moradoras. Nos quartos, as roupas de cama exibem a mesma estampa. Até a comida é igual.


Ninguém pode servir o próprio prato. É preciso entrar na fila para receber a refeição, entregue pela cozinheira pela abertura do refeitório. “Se a menina gosta mais de algo, não poderá servir mais.

Tampouco pode rejeitar berinjela, por exemplo”, explica a artista Dulce Couto, contratada pela Prefeitura de Belo Horizonte com a missão de desenvolver uma metodologia capaz de ajudar a personalizar os abrigos. O trabalho chamou a atenção de uma pesquisadora da Alemanha, que passou um mês em BH absorvendo o método para ser aplicado na Europa.

Ao chegar ao abrigo, Dulce percebeu que não havia critérios para a separação das roupas de cada uma das meninas. Até as calcinhas eram retiradas de uma pilha amontoada na lavanderia. Com a ajuda das adolescentes, a artista costurou e bordou sacolas individualizadas para as roupas íntimas, que passaram a ficar dependuradas na beirada da cama. Também as cabeceiras receberam almofadas com a foto de cada uma, na cor escolhida por elas. “O quarto da minha filha tem a cara dela, com bichos de pelúcia e porta-retratos. Foi pensando nisso que criei pequenos ‘santuários’, construindo espaços privativos dentro do coletivo”, explica.

Nas entidades de acolhimento da capital mineira nunca falta alimentação de boa qualidade nem roupas doadas em grande quantidade, muitas delas até de grife. A situação é oposta à da maioria dos barracões das famílias de origem. Desde cedo, os adolescentes são incentivados a construir a autonomia, participando de cursos profissionalizantes, monitorias e aulas de música. “No entanto, mesmo quando as roupas são novas, elas nunca foram escolhidas pelas garotas. Quando duas delas gostam da mesma blusa, é preciso fazer um sorteio.
Elas sempre têm de pensar umas nas outras ao tomar uma decisão”, conta a artista.

IDENTIFICAÇÃO Antes do trabalho de Dulce Couto, as garotas incendiavam a casa e quebravam objetos, ocorrência comum nos abrigos para adolescentes, tidos como os mais difíceis de administrar. “Acontece o mesmo no Brasil, na Alemanha ou em Cingapura. Para gostar do lugar onde moram, as crianças e adolescentes precisam se identificar com o ambiente. É preciso plantar sementes de afeto na casa, de modo a contagiar quem mora ali dentro”, ensina.

“Quando vou passear na casa da minha madrinha, nos fins de semana, dá saudade das meninas do abrigo, mas lá é diferente. O que eu mais gosto é de conversar com ela, que é minha amigona. Tenho liberdade de expor minha opinião e de falar sobre qualquer assunto”, confessa Vanessa* (nome fictício), de 13 anos, que conquistou o prêmio de melhor aluna da escola, por dois anos seguidos. “Quero muito estudar, me formar e trabalhar para sair logo do abrigo. O que mais me atrapalha é a idade”, diz ela, com uma aflição incomum para a pouca idade.
Ela ainda nem completou os 14 anos exigidos para se inscrever nos programas de aprendiz.

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