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Estado de Minas

Pais que perderam a guarda dos filhos se esforçam para refazer os laços afetivos

De acordo com os especialistas, prática é fundamental para o futuro das crianças


postado em 22/12/2014 06:00 / atualizado em 22/12/2014 10:11

Alberto leva os filhos para passar o fim de semana em casa. Ele e a mulher estão tentando reconstruir o ambiente familiar(foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA PRess)
Alberto leva os filhos para passar o fim de semana em casa. Ele e a mulher estão tentando reconstruir o ambiente familiar (foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA PRess)


“Ei, tia, me dá um trocado?”, pede Luan* (nome fictício), de 8 anos. Diante da recusa da repórter, que acaba de pisar no abrigo do Bairro Céu Azul, o garoto não se faz de rogado. “Tia, tia! Tem um bombom aí?”, torna a pedir, com insistência. Luan é observado a uma certa distância por Renato*, seu irmão mais novo, de 6 anos. Mais tímido e bastante observador, ele ainda chupa o dedo. “Não vou falar nada”, já vai avisando o menino.


Sob acusação de maus-tratos e negligência, os dois garotos foram retirados há dois anos da comunidade da Vila Paraíso e levados para o abrigo, onde estão até hoje. Estavam soltos na rua, pedindo esmolas, prática que, aliás, estão custando a esquecer. “Ô, tia, me arranja uma bala?”, implora Luan, pela terceira vez, em menos de meia hora. Ele quer chamar a atenção para si. Suas irmãs mais velhas, de 12 e 13, já tiveram a guarda assumida pela avó materna.

É uma sexta-feira e os irmãos estão mais agitados do que em outros dias. Na véspera do fim de semana, como já ocorre há um ano, aguardam a chegada do pai, o servente de pedreiro Alberto, de 32. Ele irá levar os filhos de volta para casa, onde vão se encontrar com a mãe, a auxiliar de cozinha Bruna, que está trabalhando. Ela não pôde buscar os garotos, mas a família finalmente estará completa, depois de dois anos separada por determinação do Juizado da Infância e da Juventude. De repente, toca a campainha no abrigo. “É ele, é ele!”, gritam os meninos, em coro.

Com o corpo coberto por tatuagens e bermudão abaixo dos joelhos, Alberto chega ao abrigo na hora marcada. Apesar do histórico como ex-dependente químico e enquadrado pela Lei Maria da Penha, acusado de ter agredido a mulher, o pai das crianças aparenta tranquilidade. É o único capaz de impor respeito à dupla, famosa pelos problemas no abrigo e na escola. Naquele dia, Luan havia sido expulso por bater na professora. Ao ouvir falar sobre o assunto da violência, o caçula aproveita a deixa. Tira o dedo da boca e pede, com a voz sumida: “Pai, você vai parar de bater na minha mãe, falô.” É a única vez em que o garoto se abre para dizer algo. Em seguida, torna a se trancar no seu mundo.

REFORMA DE CASA Depois de estender um pacote de salgadinhos aos garotos, conseguindo o silêncio deles, Alberto confirma ter largado a dependência química do crack há sete meses, por vontade própria. Com R$ 520 mensais assegurados pela prefeitura, ele está reformando o barracão de madeirite onde mora. A ideia é construir uma casa com três cômodos e banheiro. Antes, os garotos não tinham acesso a cama nem a chuveiro quente. Em paralelo, a mãe conseguiu um emprego de cozinheira e, assim que concluir a reforma, Alberto também será empregado. “Disseram que nossos meninos estavam pedindo dinheiro na rua, mas a minha mulher pagava uma vizinha para tomar conta deles enquanto ela trabalhava. Ela nunca abandonou nossos filhos”, afirma ele, passando a apresentar as notas fiscais dos gastos com o material de construção.

Aos trancos e barrancos, a família de Luan e Renato está conseguindo se recuperar, por intermédio do Serviço de Apoio à Reintegração Familiar (Sarf), vinculado à Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social. Segundo a gerente Valéria Cardoso, o universo de casos atendidos corresponde a 10% das crianças abrigadas, ajudando apenas naqueles casos em que a reintegração para a família de origem ou extensa não pode ser feita diretamente pelo abrigo. “Estamos conseguindo restabelecer o direito de viver em família, que é o mais importante. Com a equipe de psicólogos e assistentes sociais, envolvemos o centro de saúde do bairro, as reuniões na escola e outros serviços. Quando a criança retorna para casa, ainda a sacompanhamos durante seis meses para ver se deu certo”, explica.


Maicon tem todo o apoio e o carinho do padrinho afetivo Roberto e da mulher dele, Aline, nos fins de semana e nas férias(foto: Túlio Santos/EM/D.A Press)
Maicon tem todo o apoio e o carinho do padrinho afetivo Roberto e da mulher dele, Aline, nos fins de semana e nas férias (foto: Túlio Santos/EM/D.A Press)
Amor que vem de longe

Na quinta-feira, Roberto Cassimiro, de 40 anos, deu uma passada rápida no abrigo no Bairro Carlos Prates, na Região Noroeste de Belo Horizonte. Apesar de ainda não ter chegado o sábado, o padrinho afetivo fez questão de acompanhar o afilhado Maicon* (nome fictício), de 12 anos, na festa da formatura da escola. Os dois se tornaram grandes amigos desde o último Natal, quando a mulher de Roberto, a professora Aline, inscreveu-se no programa de Apadrinhamento Afetivo do Juizado da Infância e da Juventude, parceria com a Pastoral do Menor. Católicos, Roberto e Aline batizaram Maicon na igreja onde se casaram, tornando-se seus padrinhos afetivos e efetivos.

“Tchau, tio!”, despede-se Maicon, sem nem olhar para trás. Na mochila estudantil leva apenas o essencial. Na casa dos padrinhos, onde passa os fins de semana e as férias, Maicon conta com um quarto decorado com motivos masculinos, roupas e brinquedos. Enfim, tudo o que precisa para ser feliz. “O certo é isso mesmo. Se a criança gostasse do abrigo a ponto de não querer sair, era sinal de que havia algo de errado com ela”, compara o coordenador da casa, o psicólogo Frederico Suppa.

Ao buscar o afilhado Maicon, Roberto revela que ele e a mulher estão inscritos desde abril na fila da adoção, com perfil de preferência para adotar uma criança de até 5 anos. Ao conhecer o adolescente, porém, o casal encantou-se com o garoto centrado e estudioso. Sem noção geográfica, Maicon chegou a manifestar o desejo de pedalar de bicicleta até o serviço do padrinho, do Carlos Prates até o Caiçara. Em seguida, confessou desconhecer o shopping das imediações, o Del-Rei, e menos ainda o mar. “A vida dele não andou mais de cinco quilômetros no entorno do abrigo”, comenta o padrinho.

“Conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente, o abrigo teria de ser o último recurso. É danoso o afastamento de uma criança da sua família. Depois que ela entra no abrigo, leva pelo menos quatro meses para conseguir sair”, critica o coordenador de outra casa, Mizael de Jesus Lima Cardoso. Ele explica já ter recusado mais de 10 crianças, que chegaram sob acusação de negligência das famílias, levadas pelos conselhos tutelares. “Já chamaram a polícia para mim. Mas não vou abrigar uma criança só porque a mãe saiu para uma festa e deixou os meninos sozinhos em casa. É preciso tentar, antes, ajudar essas famílias”, diz.

PROBLEMAS DE SAÚDE Diante do número grande de crianças abrigadas, acima de 700, as equipes responsáveis estariam deixando a cargo das casas de acolhimento o acompanhamento do desenvolvimento familiar dos internos. Há casos de crianças encaminhadas às instituições sem certidão de nascimento ou documento de identificação, segundo Mizael. “Uma vez, recebi uma menina com diabetes e catarata em último grau. Fomos verificar e a família era muito humilde e sem recursos. A mãe era analfabeta e não sabia o que fazer com a filha, mas mantinha um vínculo incrível com a criança. Ela via a mãe e chorava aos prantos. O problema dela era de saúde, e não de internação”, avalia.


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