Ouro Preto – O ano para lembrar o bicentenário de morte de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1737-1814), chegou ao fim, mas o legado do mestre do barroco está cada vez mais vivo e surpreendente. Depois de estudos iniciados em 2011, o restaurador e professor Antônio Fernando Santos atribuiu três peças, em Ouro Preto, na Região Central, ao artista, que foi escultor, entalhador, arquiteto e perito. São elas a imagem de Nossa Senhora da Guia, do acervo da Paróquia de Santa Efigênia, e duas também em madeira da Capela de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia, mais conhecida como Mercês de Cima: São Pedro Nolasco e São Raimundo Nonato.
Segundo Antônio Fernando, as esculturas da primeira fase de Aleijadinho, que vai de 1760 a 1774, representam a época em que a obra dele ainda exibia forte influência europeia. Ao contrário das demais imagens conhecidas na atualidade, os três objetos são na categoria “de vestir” e de “roca”, o que significa cabeça e corpo sobre estrutura de madeira que recebe roupas de tecido. Os sapatos ficam aparentes. “As peças de roca eram muito comuns e, claro, mais leves do que as maciças, facilitando o transporte sobre o andor durante as procissões. No caso específico de Nossa Senhora da Guia, o corpo é articulado, como se fosse de uma boneca, mostrando ousadia por parte de Aleijadinho”, afirma.
Até agora, o conjunto não está citado em nenhum dos livros sobre o patrono das artes no Brasil, nem mesmo na obra referência O Aleijadinho e sua oficina – Catálogo das esculturas devocionais, editado em 2002, de autoria dos especialistas Myriam Andrade Ribeiro Oliveira, Olinto Rodrigues dos Santos Filho, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e do próprio Antônio Fernando, que trabalhou como restaurador no Iphan e hoje é docente da Universidade Fumec, em Belo Horizonte.
O restaurador cita a imagem de Nossa Senhora da Guia, com 80 centímetros de altura, como das mais bonitas e requintadas que conhece. “Tem olhar misterioso. Os olhos arredondados, amendoados, se assemelham aos de Nossa Senhora das Mercês, que está na Basílica de Nossa Senhora do Pilar, e aos do Anjo Tocheiro, exposto no Museu da Inconfidência (na Praça Tiradentes, no Centro Histórico de Ouro Preto). Além disso, a peça tem requinte escultórico, cabelos penteados à moda europeia da segunda metade do século 18”, explica. A obra se encontra em ótimo estado de conservação.
As imagens dos santos têm 1,45 metro de altura e podem ser vistas nos altares laterais da Capela de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia, vinculada à Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, e distante 50 metros da Praça Tiradentes. Do lado esquerdo de quem olha para o altar, está São Pedro Nolasco, com a veste branca, e do direito, com roupa vermelha denotando seu posto de cardeal, São Raimundo Nonato. As duas esculturas ficaram guardadas durante muito tempo, devido à restauração do templo barroco e, como a de Nossa Senhora da Guia, não têm documento que comprovem autoria.
Pesquisas O próximo passo nas pesquisas, diz Antônio Fernando, será levar o resultado para avaliação do grupo empossado dia 18 de novembro, pela direção do Iphan, para estudar as imagens atribuídas ao artista mineiro. “Por enquanto, tenho um estudo formal que vai demandar comprovação científica”, diz o restaurador. Do grupo, fazem parte, além os três autores do livro referência – Myriam Andrade Ribeiro Oliveira atua como consultora –, a restauradora Lucienne Elias, do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (Cecor/UFMG) e o promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda, coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC/Ministério Público de Minas Gerais). Outros especialistas farão parte da turma que vai conhecer melhor o acervo e trabalhar para evitar perdas e combater as falsificações.
Entusiasmado, Antônio Fernando destaca o ano do bicentenário do gênio da arte colonial como produtivo em vários aspectos.
Inspiração para artistas
Congonhas e Mariana – A arte do mestre Aleijadinho continua a inspirar muitos artistas mineiros. E alguns mostram os métodos de trabalho do patrono das artes no Brasil. Na sua oficina em Congonhas, na Região Central de Minas, o escultor Luciomar Sebastião de Jesus, de 50 anos, amarra faixas de tecido na mão. Depois pega o formão e simula a forma de trabalhar de Antonio Francisco Lisboa, quando o mestre do barroco já estava com as limitações causadas por uma misteriosa doença. A próxima demonstração será com um arco de madeira que, impulsionado, gira sobre a base de pedra-sabão e fura a superfície como se fosse a broca de uma pua. “Aleijadinho também trabalhava com goivas, macetes ou malhos. Fazia suas ferramentas para trabalhar a pedra-sabão e a madeira”, diz Luciomar.
Os olhos do escultor brilham ao falar de Antonio Francisco Lisboa, de quem se considera um seguidor.
Já em Mariana, a 115 quilômetros de Belo Horizonte, o artista plástico Elias Layon, com cinco décadas de experiência e dono de ateliê na Praça de São Pedro dos Clérigos, no Centro Histórico, também se diz seguidor do mestre mineiro falecido há 200 anos. “Aleijadinho é nossa maior referência”, diz Layon. No seu ateliê, o escultor e pintor destaca os pontos principais do “mestre”: grande expressividade dos rostos, anatomia e panejamento (roupas). Layon cita a pintura de Manuel da Costa Ataíde (1762-1830), natural de Mariana, como outro destaque da arte colonial. “Aleijadinho e o mestre Ataíde fizeram uma simbiose perfeita. Ataíde é o lado cromático de Aleijadinho. Os dois se complementaram em bela harmonia, e o melhor exemplo está na Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto.”
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