Viver sem água na torneira e no chuveiro é um inferno – banho de caneco, panela suja na pia da cozinha e aquela sensação de que nada está limpo. Milhares de mineiros já vivem esta situação caótica e, em alguns casos, chegaram a ficar 15 dias no seco, buscando baldes em bicas e minas longe de casa. Para sentir na pele os efeitos da crise hídrica, os repórteres Gustavo Werneck e Márcia Maria Cruz passaram três dias, cada um em sua casa, com um estoque de água suficiente para as necessidades básicas. Tarde da noite, depois do serviço, o jornalista esquentou água no fogão, temperou com alguns litros frios numa bacia e encarou o desafio de tomar banho sem ducha. Para evitar pratos e talheres sujos, comprou material descartável. No segundo dia da simulação de falta de água, a repórter teve certeza de que a carestia não é algo distante. Não adianta buscar soluções para economizar água e aumentar o gasto de energia elétrica. Ela também apagou as luzes, abriu a geladeira apenas o tempo necessário e reduziu o consumo de bens industrializados. O racionamento voluntário não foi fácil e a experiência serviu para levar à reflexão sobre excessos e desperdício. Cada copo de água agora é visto por eles como um tesouro.
Banho com caneco
Meu primeiro dia sem água começou, na verdade, na véspera. Fiquei imaginando como seria tomar banho, escovar os dentes, lavar vasilhas, dar descarga, enfim, manter a rotina de qualquer cidadão. Vou confessar: até sonhei que usava a pia da cozinha, tal a ansiedade. De volta à realidade, comprei pratos, talheres e copos descartáveis – sou adepto do lixo reciclado, então não seria problema, depois, limpar o material e deixá-lo na porta para o caminhão recolher. Comprei também galão (cinco litros) de água mineral e balde (16 litros) e o enchi, com mais cinco recipientes. No total, quase 80 litros. Não satisfeito com o “arsenal”, escrevi cartazes com a frase “Estamos sem água” (foto) e espalhei por todo o apartamento – dessa forma, não correria o risco de abrir torneiras.
No verão, costumo tomar até três banhos por dia para ficar de corpo limpo e alma lavada. O que fazer agora? Na primeira manhã, lavei o rosto e escovei os dentes com a água do galão; a ducha rápida foi na academia de ginástica, algo que nunca havia feito nos 14 anos que vou lá. À noite, na volta do trabalho, esquentei uma panela de água no fogão, temperei com alguns litros da fria e tomei o velho banho de caneco, deixando um resto para jogar sobre a cabeça no fim. Lembrei-me do conforto da água morna escorrendo pelo corpo depois de muitas horas de trabalho e pensei como seria ficar no seco, num racionamento bravo, sem uma gota para dar uma refrescada.
SEGUNDO DIA
luzes apagadas
Pia da cozinha cheia é o fim. Como dei folga para a empregada, que vem dois dias na semana, usei o material reciclável para fazer as refeições e passei a comer mais fora, evitando acumular panela suja e aumentar minha aflição. Mas, como isso nem sempre é possível, me virei como pude e vi que há uma “logística” toda especial para lavar vasilhas e talheres com pouca água: ainda não peguei muito o jeito, mas prometo que vou aprender, pois nunca se sabe! Outro detalhe importante é estar preparado para zanzar pela casa com baldes e panelas cheias.
Num copo de plástico, escrevi Gus, sílaba inicial do meu nome, e o deixei ao lado do galão de água mineral, para não sujar outro. Me sentindo treinado para tempos de crise, passei também a abrir menos a geladeira, de forma a economizar energia, e apagar todas as luzes.
Nos momentos de folga, fiquei de olho na reserva de água, “milimetrando” o nível dos baldes. Lembrei-me de uma dona de casa que entrevistei na semana passada em Urucânia, na Zona da Mata, que, com o bebê recém-nascido, caminhara dois quilômetros para garantir um balde cheio e cuidar da higiene dele. Será que chegaremos a este ponto?, refleti sem parar. Se pia suja é uma tragédia, pior ainda o vaso sanitário, portanto, guardar água para o ritual da manhã é sagrado. Em mais de uma vez, recolhi o restinho da água do banho noturno para despejar na privada na manhã seguinte.
TERCEIRO DIA
Pele engordurada
A falta de água e o medo de viver uma situação de escassez prolongada me deixaram irritado. Fui sentindo a pele engordurada, embora fazendo o possível para manter a higiene completa. Novamente, tomei uma ducha na academia de manhã, e, desta vez, encontrei uma situação diferente, pois o banheiro estava em obras. Era o imprevisto batendo à porta, mas relaxei e procurei ser bem rápido. Cheguei em casa suando em bicas, por causa do sol do meio-dia, e vi as roupas acumuladas pelos cantos. Ligar a máquina de lavar, nem pensar, pelo menos por enquanto!
Quando comecei meu “racionamento”, não troquei as roupas de cama e banho, como faço toda terça-feira. Senti uma morrinha na toalha de banho e, mesmo com pouca água, resolvi imediatamente colocá-la de molho. Olhei no espelho e fiz cara de nojo. Neste último dia, a água do meu reservatório particular estava por um fio. Cheguei em casa por volta de meia-noite e meia e repeti o ritual de esquentar a água e misturar com água fria, sonhando com uma chuveirada deliciosa na sexta-feira. E, claro, fazer a barba. (Gustavo Werneck)
Tormento do vaso
Ao saber que simularia falta d’água por três dias, listei as vezes em que precisaria dela durante o dia e defini as prioridades. Comprei um balde de 20 litros para reservar e enchi as garrafas da geladeira, cada uma com 2 litros. No total, teria à disposição 24 litros para três dias. Pensei que, com tão pouca água, não teria como lavar as vasilhas. Almoçaria na rua e em casa comeria frutas, biscoitos e pães. A água reservada seria para o banho, para beber e dar ao Scott, meu cachorro de estimação.
O banho pela manhã é o momento em que me preparo para o dia. Diante da escassez, a primeira providência foi cortá-lo. Tomaria apenas à noite. Essa mudança teve consequência em todos os meus outros hábitos. Meu relógio biológico funciona regularmente pelas manhãs. Estava aí o primeiro desafio.
A maior preocupação era ter água para o vaso sanitário. Foi o que mais me atormentou. Pensei que poderia reaproveitar o pouco de água que consegui guardar. Usei uma bacia de plástico pequena para não deixar a água se esvair pelo ralo. Procurei regular o meu intestino para ir ao banheiro à noite. Seria feito à moda antiga, como minha avó costumava fazer: esquentar a água no fogão e molhar com caneca. Não era muita água, 5 litros. Primeiro, distribui a água pelo corpo e usei um pouco para fazer espuma e a que restou para eliminar o sabão. Depois joguei o que reaproveitei no vaso.
SEGUNDO DIA
Aniversário seco
Era o dia do meu aniversário, então pensei em fazer uma massagem relaxante. Tive a ideia antes de saber da restrição hídrica a que estaria submetida, então não teve como cancelar. A massagista sugeriu que eu deveria tomar um bom banho quando chegasse em casa. Sem falar com ela, pensava que teria apenas 5 litros para todo o dia e que não poderia gastá-los de manhã. Deixei para tomar banho à noite, mas este dia, por efeito da massagem, foi o mais difícil de resistir a ir ao banheiro.
Para fazer a higiene matinal, nos três dias, usei um copo de água para escovar os dentes e lavar o rosto. À noite, como tinha ficado o dia inteiro com o óleo da massagem, precisei usar um pouco mais de água para ficar razoavelmente limpa. Foram 7 litros e não 5 como no primeiro dia. Fiquei preocupada, pois não cumpri a cota do dia. O melhor momento do dia era quando tomava banho, porque poderia enfim ir ao banheiro. Era mesmo um alívio poder usar a água do banho para jogar no vaso. Nunca pensei que a falta d’água poderia mudar tão profundamente minha rotina.
TERCEIRO DIA
Escovar os dentes e dormir
Neste dia, não dei conta. Já estava cansada de tomar banho apenas à noite e irritada com a falta d’água para cuidar da casa. Olhava para o cesto e a roupa suja acumulava. Dividi em duas partes a água que me restava, cerca de 6 litros. Tomei um banho com 3,5 litros. Deixei o resto no balde (foto) para tomar banho à noite. Nos três dias, a água ocupava todo o meu pensamento. Mesmo fora de casa, o meu ímpeto era economizar, porque pensava que, se desperdiçasse, poderia faltar a alguém.
Ao ir para casa no fim da jornada, o que mais queria era tomar um belo banho, mas também estava com fome e vontade de ir ao banheiro. Eu não tinha nem 3 litros d’água e evidentemente não daria para fazer as três coisas. Para jantar, uma conserva de berinjela, feita por minha mãe, que estava na geladeira e pãezinhos. Para tomar banho, teria que esquentar a água e preparar a bacia. Desisti. Usei apenas um copo dessa água para escovar os dentes e lavar o rosto. O melhor era dormir e esperar o dia seguinte, quando, enfim, poderia usar o chuveiro. (Márcia Maria Cruz)