Sentados no meio-fio do canteiro que separa a Biblioteca Pública Estadual Luiz de Beça do complexo de museus da Praça da Liberdade, ocorre um diálogo improvável entre um intelectual aposentado e um adolescente em conflito com a lei.
– João, você sabe que esses prédios ao nosso redor são públicos? Se quiser, você pode meter o pé lá dentro e entrar… Você diz que gosta muito de vir aqui na Praça da Liberdade, não é?
– Verdade. Venho muito aqui para ficar andando fora da vila, longe da confusão. Mas nunca entrei nesses prédios não...
– Sei que você tem medo do guarda chegar e dizer: “Ô moleque, o que você está querendo aqui?” Se isso acontecer, você diz que ‘precisa ir ao banheiro’ ou que ‘só vai entrar e olhar’, ok?
O bate-papo entre o adolescente infrator e o adulto de classe média alta, com a troca de experiências e de culturas tão diversas, é possível graças à retomada do projeto de orientadores sociais da Secretaria Adjunta de Assistência Social da Prefeitura de Belo Horizonte.
Depois de meia hora de introdução e cinco encontros marcados, com a ausência de João em dois deles, o adolescente decide romper a barreira do medo. Algo o impedia de subir as escadas do Memorial da Vale e visitar as exposições interativas, que atraem milhares de visitantes ao local toda semana. Com chinelos de dedo, bermuda e camisa de malha, ele dá o primeiro passo. Ressabiado, transpõe o umbral da porta amparado pela presença do orientador, que serve de apoio moral ao jovem. “Sabe o que fiz da última vez em que um guarda me chamou de moleque? Enchi ele de porrada”, afirma o rapaz, mantendo o olhar desafiador, como qualquer adolescente. “Tenho um irmão advogado que vive me lembrando que, em vez de dar porrada, o homem é dotado da capacidade da fala”, disse Augusto. “Lá na vila não tem disso não”, responde João.
Neste momento, a sabedoria precoce de João se sobrepõe a de Augusto, que permanece quieto, ouvindo. O orientador é estudado, mas desconhece as regras da vila, que João aprendeu desde que começou a engatinhar. É respeitado como peça importante do tráfico. Seu rosto muda quando pisa no tapete vermelho do museu.
SONHO DA GIRAFA João permanece calado a maior parte do tempo. Só sabe falar sobre a vila. É difícil perceber se ele realmente está digerindo as palavras de Augusto. O orientador chega a ficar ansioso, embora esse seja ainda o primeiro mês de convivência. A dupla ainda tem alguns meses pela frente para caminhar, assim como fez Francisco Carlos de Oliveira, de 50 anos. “Meu índice de recuperação dos garotos é de 95%.
Pai de cinco filhos homens, o pastor evangélico começou a atuar como orientador há sete anos, como forma de aprender a lidar melhor com os jovens. “Os infratores não são esses monstros que as pessoas pintam. Outro que ajudei era influente no esquema do tráfico. Aos poucos, descobri que ele tinha muita vontade de ir ao zoológico e conhecer a girafa. A família nunca o tinha levado. O garoto só precisava se reencontrar e passar a levar uma vida normal”, acredita Francisco Oliveira, que já orientou 11 adolescentes em conflito com a lei.
SERVIÇO
COMO PARTICIPAR
Para ser voluntário, é preciso ter acima de 21 anos, disponibilidade para encontros semanais e residir em BH. Mais informações na Gerência de Coordenação de Medidas Sócio-educativas da PBH: (31) 3277-4420.
Preconceito desconstruído
“Esse projeto salva vidas. Ele não pode morrer.” Com este apelo, o jovem Jonhatan Mangabeira, de 25 anos, volta à cena depois de ter sido recuperado, aos 15 anos. Tornou-se um homem casado, escritor de três livros, íntegro. Adolescente, chegou a morar dois anos nas ruas, dormindo embaixo de marquises e cometendo pequenos delitos. Provavelmente, estaria nesta vida errante até hoje se não fosse pelo empenho do orientador Lindeberg Calixto, de 45.
Embora atribua todo o sucesso ao jovem, Lindeberg teve participação determinante na decisão de Jonhatan voltar para a casa, no dia do aniversário da mãe dele. Até hoje, o rapaz se emociona ao lembrar da cara que a mãe fez: “Quando me viu chegar, no alto da escada, abriu os braços para mim e começou a chorar”. Antes disso, foram necessárias longas horas de conversa até formar o convencimento do adolescente, que vivia livre nas ruas. Ele imaginava tomar um banho de fonte e voltar para casa, mas não lembrava mais do endereço onde morava, nem tinha dinheiro para tomar ônibus.
Lindeberg levou o menino, primeiro, para tomar um banho de cerca de duas horas no banheiro da rodoviária. Em seguida, eles precisaram comprar chinelos de dedo e roupas novas. Seguiram para o shopping popular das imediações e vasculharam até encontrar um estande que aceitasse cartão. Depois, o orientador recuperou o endereço do jovem na ficha de inscrição, localizou o ônibus e o levou pelas mãos até o local, servindo de apoio para que ele não desanimasse. “Tivemos altos e baixos durante o processo. Não foi fácil. Encontrei jovens talentos, mas o Jonhatan é hour concour”, elogia.
MUDANÇAS “Já fui orientadora social. Acredito muito na medida socioeducativa como forma de desconstruir o preconceito em relação aos adolescentes, de desmistificar a ideia das pessoas de que os meninos são perigosos”, afirma Carolina Flecha, técnica de referência do Serviço de Proteção Social ao Adolescente em Cumprimento de Medida Sócio-educativa de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade. Cabe à prefeitura executar a medida da liberdade assistida e ao estado se responsabilizar por aqueles privados de liberdade.
Segundo a coordenação, os próprios jovens ficam surpresos ao ser informados que há pessoas interessadas em doar o tempo para eles, sem receber nada em troca. “Uma pequena janela que se abre promove uma mudança para sempre na vida de uma pessoa. É alguém que aposta no adolescente, quando até a família deixou de acreditar. As pessoas ficam indignadas com a banalização da violência e passam a se trancar cada vez mais dentro de casa. Será que este é o melhor meio de se sentir seguras”, provoca Márcia Passeado, analista de políticas públicas da Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social e gerente do programa. (SK).