A voz das ruas pede passagem. O tamanho das aglomerações de pessoas este ano em Belo Horizonte revirou os gabinetes do poder público e surpreendeu produtores independentes. O carnaval levou para ruas e avenidas um público 30% superior ao do ano passado, com 1,3 milhão de pessoas, segundo estimativas preliminares da prefeitura. Nos últimos dois anos, simplesmente triplicou de dimensão. Assim, deixa lições de um carnaval popular, espontâneo e democrático. E dadas as proporções tomadas, lições também do que esperar para os próximos anos. Nessa quarta-feira, enquanto foliões ainda se despediam da farra embalados pelo ritmo dos blocos do Manjericão, no Bairro Serra, na Região Centro-Sul, e I wanna love you, no Sagrada Família, Leste de BH, produtores e a própria Belotur defendiam mais organização, ao cobrar uma lei específica para os festejos de Momo: sem amarras, pronta para garantir a segurança da população e, acima de tudo, capaz de manter esse autêntico carnaval da cidade.
A ideia é criar urgentemente uma legislação para regulamentar a festa. Um dos pontos é deixar claro o conceito de bloco.
“Não queremos burocratizar nem mudar nada. Não falo em lei para proibir, mas para adequar a realidade de agora. A intenção é ampliar o diálogo e a integração para modernizar e refinar o planejamento em todos os seus aspectos. A característica desse carnaval é ser espontâneo e isso não vai mudar”, esclarece Werkema. Para ele, a festa em BH está atraindo tanta gente por ser de rua, aberta, familiar, de graça e segura. “Não vamos baianizar o carnaval da capital, com trio elétrico e artista em cima, cordas com abadás, discriminando quem não pode pagar”, ressalta. Entre os pontos a serem melhorados, ele destaca a necessidade de maior efetivo da PM. Segundo ele, já começa hoje o planejamento para o carnaval do ano que vem, para haver tempo hábil de corrigir erros e imprecisões.
André Leal Medeiros, do Bloco Alcova Libertina, aponta a grande lição de 2015: “Não dá mais para as autoridades negarem o que está acontecendo em BH. É preciso diálogo”. Para o produtor, é um absurdo que praças estejam cercadas e o Ribeirão Arrudas sem proteção – o Alcova Libertina arrastou mais de 50 mil pessoas, no domingo, às margens do curso d’água. André lamenta também o show “encerrado na marra” pela polícia na Praça da Estação, 1h30 de ontem.
A falta de planejamento prejudicou muitos cidadãos durante o carnaval. Patrícia Maura, de 33 anos, ficou presa no trânsito na Avenida dos Andradas durante o desfile do Alcova Libertina. Para a contadora, carnaval é bom, mas precisa de estrutura. Ela reclama da falta de sinalização nas ruas, para que pudesse buscar rotas alternativas. Quem estava com o bloco, no domingo, viu a PM passar aperto para proteger os foliões que invadiram também a pista no sentido bairro. Não havia espaço suficiente para o público, espremido entre a mureta de proteção do Arrudas e a faixa liberada para os carros. Na segunda-feira, com o Baianas Ozadas, e na terça, com o Baque de Mina, a história se repetiu. E a atuação da BHTrans deixou a desejar.
Por meio de nota, a empresa de trânsito informou que foram necessárias adequações no controle do tráfego devido ao número de foliões além do esperado. Foram mobilizados, em média, 250 agentes de trânsito por dia e 10 reboques leves e pesados, além de policiais militares e guardas municipais.
ESPÍRITO DAS RUAS
Para o historiador Guto Borges, de 33, o mercado não pode se sobrepor ao uso público. O que se vê em curso, nas grandes cidades, é um projeto de diminuição do espaço público para impedir a opinião e a liberdade. “É preciso rever a ideia de cidade. Não é alargar as ruas para dar espaço para mais carros. O espaço público é para as pessoas”, considera. Guto está envolvido com vários blocos de rua. Entre outros, Mamá na Vaca, Então, Brilha!, Tico-Tico Serra Copo, Filhos de Tcha-Tcha e Manjericão. Em comum, uma visão da cidade que resiste. Fenômeno, segundo Guto, presente também no Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal. “É o carnaval como manifestação cultural popular. Não é para o mercado, para o turista ou para a propaganda. É para a cidade”, ressalta.
De acordo com o historiador, a prefeitura investe mais em publicidade do que em estrutura: “O lado da PBH é o mercado”. “A festa das ruas é um contraponto. Sem a tradição do produto, do show, da propaganda”, diz. Para o historiador, a aglomeração espontânea do povo nas ruas é a celebração da cidade. Guto fala da luta dos blocos nos últimos anos contra a “burocracia kafkiana” do poder público. “A gente tem lutado muito para mostrar que, como manifestação cultural popular, não precisamos de alvará. Dizem que os blocos não comunicam (a concentração e o trajeto). Quase todos os blocos comunicam. A gente quer estrutura. Que a prefeitura faça o papel dela. Há uma burocracia que beira a impossibilidade e o constrangimento”, lamenta.
Artigo: não dá para começar a conversar dois meses antes
Renata Chamilet
Organizadora do Bloco Baianas Ozadas
É nosso quarto carnaval. Começamos com sete pessoas. Este ano, nenhum bloco ficou do mesmo tamanho. Todo mundo cresceu, no mesmo tempo em que tantos outros blocos surgiram também. A gente já vem há algum tempo conversando muito timidamente com o poder público, participando de audiências na Câmara Municipal. A luta dos organizadores dos blocos é para que o carnaval de rua seja enquadrado como manifestação cultural e não como evento. Em 2014, tivemos uma grande vitória, que foi a autorização para a venda de bebidas alcoólicas por ambulantes durante o carnaval. Em 2013, quando procuramos os bares do trajeto do Baianas para saber se eles iriam abrir as portas para o nosso público, eles riram. “Abrir no carnaval?”. É preciso que todo mundo entenda que Belo Horizonte tem carnaval. Precisamos com urgência de uma legislação específica para o período. É preciso rever questões como sonorização, tempo e espaço de circulação de veículos de som e fechamento de vias públicas. A Avenida Afonso Pena é fechada aos domingos para a feira de artesanatos. A população sabe disso e busca rotas alternativas. Tem que ser assim com o carnaval. Com informação em tempo hábil para o cidadão não sair prejudicado. Não é sugerir “evite estacionar”, em avisos, como ocorreu na Avenida João Pinheiro. Muitos carros ficaram presos por causa disso. É proibir com responsabilidade. O carnaval precisa ser bom para quem gosta e para quem não gosta da folia. É preciso diálogo entre população, organizadores e autoridades. Especialmente pela segurança das pessoas. O xixi, o lixo, são ruins? São. Mas é possível contornar. Agora, e se uma pessoa se machuca? Portanto, volto a dizer, é preciso ter responsabilidade. Sinto que a Belotur até tem disposição para acertar. Quer fazer o melhor. Mas parece que está sozinha. Com a BHTrans é bem mais difícil. A única ajuda do prefeito é não proibir. Este ano, fiquei preocupada. E as pessoas nas ruas me surpreenderam muito positivamente. O folião de BH está aprendendo a alegria do carnaval nas ruas, na multidão. Ainda que faltem lixeiras, por exemplo, já tem muita gente andando com o seu lixo até encontrar uma lixeira. Não dá para começar a conversar sobre o próximo carnaval dois meses antes. Uma festa de casamento para 500 convidados começa a ser organizada dois anos antes. Precisamos de uma comissão permanente que trabalhe pensado no melhor para todos..