O movimento dos ônibus atesta o ponto de chegadas e partidas. Mas não é só. Estações do BRT/Move, como a São Gabriel, mais do que uma estrutura de transporte público abrigam um mundo de histórias. No bairro da Região Nordeste de Belo Horizonte, o maior terminal do sistema é vivo e, ao longo de 24 horas, ganha diferentes feições, com os quase 70 mil passageiros que circulam por lá diariamente. O Estado de Minas acompanhou esse vai e vem: um dia e uma noite na estação que desde 8 de março é ponto obrigatório para quem usa coletivos na capital. Como bem escreveu Milton Nascimento em Encontros e Despedidas, a plataforma é a vida daquele lugar.
O dia começa cedo para quem às 6h já está na estação – de onde partem a cada dia 37 linhas municipais – pronto para ir ao trabalho, à escola ou a outro compromisso nas primeiras horas. Nas catracas, nas escadas, nas plataformas, nos ônibus que partem, muita gente com o passo apressado se ajeita. Mas, em meio ao frenesi, há espaço para o afeto.
Com tantos rostos diferentes há quem se destaque, como o aposentado João Capistrano Rosa, de 75. Na bolsa debaixo do braço, leva o amigo fiel de todas as horas. Billy não se assusta com tanta gente que passa – vestido de verde-amarelo, o pinscher transportado a tiracolo nem late. Talvez por isso embarque sem problemas. Morador do Bairro Nazaré, usa o Move para ir ao Centro, onde vende laranjas. Com seu fiel escudeiro, já é conhecido de outros passageiros. Antes de seguir viagem, João costuma protestar diante dos que não embarcam mesmo quando ainda há espaço no coletivo. “O ônibus vai vazio.
Mas alguns têm mais dificuldade entre o subir e o “apear”. Entre os milhares de passageiros, há quem dependa dos elevadores para chegar às plataformas, como a aposentada Maria Rita Santos Vieira, de 56, que anda com auxílio de muletas. Preço das duas próteses no fêmur, depois de sessões de radioterapia e de uma osteoporose. Com ajuda do marido Sílvio Antônio Vieira, de 59, ela passa pela estação lembrando quando tudo começou: o romance iniciado quando a mãe dela a deixou ir à missa em Rubim, no Vale do Jequitinhonha. “Nós nos conhecemos em uma pracinha, depois da igreja. Foi complicado, pois minha mãe não aceitava.” Ela tinha 12 anos e ele, 14. Dificuldades superadas, o destino os levou até São Gabriel.
Como os deles, os milhares de rostos, tipos e histórias fazem da estação meio de locomoção e ponto de diversidade. Se de manhã as pessoas estão apressadas, à noite o tempo parece passar mais devagar. Embora o movimento não cesse, o frenesi se reduz. É o tempo de gente como o pintor Elenilson de Oliveira Novais, de 21. Terno cinza abotoado, camisa branca e gravata vermelha compõem o visual para visitar pela primeira vez a igreja no Bairro Paulo VI. Como mora em Contagem atravessou a capital para ir à Estação São Gabriel, de onde seguiria para seu destino.
EXPECTATIVAS E DECEPÇÕES
Principalmente a essa hora, na falta de lojas ou lanchonetes, vendedores ambulantes são a salvação para quem tem fome. Desde que chegou, às 20h, Jobi Ferreira do Nascimento contabilizou a venda de 60 pacotes de salgadinhos. Diz não se preocupar com a fiscalização. “Tenho contas para pagar. Hoje vendi tudo, graças a Deus”, afirma. Já são quase 22h quando chega a atendente Cristiane Nascimento, de 29. É um dia diferente. O uniforme de trabalho está guardado na bolsa. Sapato de salto, blusa de seda estampada e uma briga com o marido – tudo para assistir ao filme 50 Tons de Cinza com as amigas. De volta da sessão, não parece certa de que a empreitada valeu a pena. “Esperava mais. Como li os três livros, queria mais detalhes. O filme só traz a história de um dos livros.” Resta esperar pelo ônibus.
Mas nem só de idas e vindas, expectativas e decepções se faz o cotidiano do maior terminal do BRT. No fim do dia, um susto: uma funcionária da Transfácil, de 23 anos, é socorrida às pressas pelos atendentes do Samu. Diante da suspeita de um AVC, o serviço foi solicitado pela Guarda Municipal, passados mais de 30 minutos dos primeiros sintomas. Tanto seguranças como guardas se queixam de que o supervisor da estação postergou o pedido de ajuda. Depois de um primeiro atendimento, a jovem caminha até a ambulância e segue até o hospital. Mais uma partida, esta fora da rotina, que como tantas outras deixa nos que ficaram a curiosidade sobre tantos destinos que partem de São Gabriel.
SONHOS Barulho de ônibus chegando e sando compõe a sonoridade da estação. É preciso tempo para apurar os ouvidos para sons mais sutis, como o dos passos. Mais tempo ainda para perceber o que vai pela mente de quem passa pela estação ou trabalha por lá.
Enquanto libera a passagem para quem vai aos sanitários, o pensamento da controladora de acesso Maria Araujo, de 47, viaja longe. Mais precisamente até os dois filhos. Liniquer, de 28, é gerente de restaurante em Guarapari, no Espírito Santo. Wadson, de 24, joga de zagueiro no Grêmio de Anápolis, em Goiás. “Um empresário o tirou do caminho. Levou o Wadson duas vezes para Alemanha e uma para a Polônia. Ele jogava na base do Cruzeiro. Lá fora, não conseguiu negociar o passe”, diz, sobre o mais novo. Divorciada há 18 anos, ela se orgulha de ter educado os meninos com seu trabalho. “Não sonho com muito, sonho com o necessário. Se fosse preciso fazer tudo de novo, eu faria.” Nas 12 horas que passa sentada em frente aos banheiros da estação, ela não tira o sorriso do rosto. É atenciosa com todos e confessa que facilita a vida de quem está apertado diante da fila para comprar ficha.
Confissões, aliás, estão espalhadas pela estação, mas só pra quem tem tempo e ouvidos para ouvir. No mezanino, Isaac Victor de Oliveira, de 15, e Arthur Henrique Maciel, de 13, suspiram e falam, em tom de segredo, o que os corações adolescentes mal conseguem esconder. O motivo da alegria foi a visão de Cindy Ellen, de 15. Embora morem no mesmo bairro, eles só se encontram na Estação São Gabriel. Quando ela volta do colégio, eles estão indo. “Todo dia a gente espera. Ela é linda demais”, diz Arthur. A dupla ganha o dia quando passa pela garota pelas escadas e recebe um “Oi”.
Também sonhadora, a estudante Jeane Martins, de 17, pensa em trocar as plataformas da estação pelas passarelas. De fato, ela chama a atenção pelo porte e pelas roupas. Ela revela que já fez testes em uma agência de modelos, foi aprovada, mas não teve dinheiro para o sonho. “O custo era muito alto e, na época, eu trabalhava como menor aprendiz. Não tinha como pagar.” Por enquanto, desfila seu 1,71 metro, esguia, para pegar o Move e encontrar o namorado, Joaquim Gabriel, de 18. Mais um destino dos quase 70 mil que seguem seu caminho graças às encruzilhadas da maior estação do BRT da capital.
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